Revista de Estudos e Pesquisas, FUNAI, Braslia, v.1, n.1,p.11-63, jul. 2004
Resumo: Apesar de pertencerem ao tronco lingstico Macro-J, humdebate antropolgico sobre a verdadeira identidade cultural dosKarajem geral, dos quais fazem parte os Java, uma vez que estes noseenquadram facilmente dentro das caractersticas conhecidas dosseusvizinhos J-Bororo do Brasil central. A partir de uma anlise doque aprpria mitologia Java diz sobre essa questo, aliada ao estudodacosmologia e organizao social nativas, proponho que os Javaconcebem-se como o produto original e nico de relaes criativasentre duas grandesmatrizes culturais, por mim associadas aosJ-Bororo e aos Aruak centrais,embora reconheam tambm influnciasmenores dos Tupi e, agora, dosno-ndios. Tanto a cultura como apessoa so concebidas como produtode relaes transformadoras entrediferentes e, ao mesmo tempo, datentativa permanente erelativamente bem-sucedida dos atores sociaismasculinos deneutraliz-las, ou seja, como paradoxais misturas puras.
Palavras-chave: Java. Cosmologia. Mitologia. Triadismo.
O povo do meio: uma paradoxal mistura pura
Patrcia de Mendona Rodrigues1
Quem so os Java?2
Os Java, autodenominados Iny (gente) ou Itya mahdu
(o Povo do Meio), so habitantes imemoriais do vale do Rio
Araguaia, em especial da regio da Ilha do Bananal (TO) e
arredores (a leste), sendo conhecidos como um sub-grupo dos
Karaj em geral (o que inclui os Karaj propriamente ditos, os
Xambio e os Java), pertencente ao tronco lingstico Macro-J.
~
1 2
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
Apesar de importantes diferenciaes culturais e dialetais entreos
trs sub-grupos, h uma estrutura geral (organizao social e
cosmologia) em comum. Do ponto de vista etnogrfico, soinegveis
e mais perceptveis ao observador semelhanas dos Karaj emgeral
com caractersticas culturais J-Bororo, talvez pela associaoa
priori que se faz entre lngua e cultura. O triadismocosmolgico,
interpretado por Ptesch (2000) como uma forma aberta do
dualismo J-Bororo, o cerimonialismo intenso, associado casados
homens, a uxorilocalidade, as relaes assimtricas entre genrose
sogros (Turner, 1979), a endogamia de aldeia, as classes deidade,
uma srie de oposies marcadas (entre as metades cerimoniais,
entre espao masculino e feminino, rio acima e rio abaixo, tiomaterno
e pai, casa natal e casa dos afins etc), o cosmos inscrito noespao,
o faccionalismo interno, a importncia dos mortos comoidentidade
contrastiva dos vivos (Carneiro da Cunha, 1978), a poucavalidade
de princpios de descendncia, tudo isso encontrado entre osJava
e associa-se aos J-Bororo3.
Por outro lado, h fatores importantes que os distanciam dos
J em geral. Para Toral (1992:280), as instituies dos Karajcomo
um todo parecem com as de muitos grupos J e com nenhum em
especial, fazendo parte do complexo cultural J. Em um dilogo
com o modelo proposto por Viveiros de Castro (1986, 1993,2002)4,
Ptesch (1987, 1993, 2000) sugere que os Karaj representariam
uma estrutura intermediria no continuum J-Bororo/Tupi, entrea
estrutura concntrica, fechada, dualista (natureza xcultura),
esttica, de centro nico e horizontal dos Bororo (Macro-J),de
um lado; e a estrutura aberta, tridica (natureza, cultura,
sobrenatureza), evolutiva, pluricntrica e vertical (busca da
transcendncia divina, o tornar-se outro) dos Tupi, de outro.O
1 3
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
dualismo tridico e assimtrico Karaj (um centro oposto a duas
polaridades), com seu centro dilatado (meio que une edivide),
representaria uma abertura da estrutura (exteriorizao docentro)
concntrica J-Bororo, no sentido de uma verticalizao (ocosmos
concebido com trs nveis, aqutico, terrestre e celeste), umequilbrio
dinmico entre foras centrpetas (J-Bororo) e centrfugas(Tupi).
A estrutura Karaj, enquanto passagem entre um e outro,possuiria
uma verticalidade que os J-Bororo no tm, mas que no alcana
a mesma dimenso da verticalidade transcendente Tupi, uma vez
que a nfase escatolgica Karaj seria muito mais um voltar asi
do que um tornar-se outro Tupi, ou seja, uma transcendncia
limitada. A autora atribui influncias Tupi, portanto, naimportncia
do xamanismo para os Karaj e nas suas concepes cosmolgicas,
dada a convivncia prxima com os Tapirap; e afirma que a
terminologia do tipo iroqus-havaino, um tipo mais amaznico,comum
aos Tapirap, Tenetehara e alto-xinguanos, a principalcaracterstica
destoante dos Karaj em relao aos povos do Brasil central5.Em
seu trabalho sobre o ritual de iniciao masculina Karaj, oHetohok
(Casa Grande), Lima Filho (1994:174) sugere cautela com a
busca de solues hbridas, como a proposta por Ptesch, pelo
fato da sociedade Karaj estar longe de ser consideradaconhecida.
Entretanto, o autor aponta inmeras semelhanas temticas entre
o Hetohok Karaj e o ritual Kwarup alto-xinguano, por um lado,e
o rito de iniciao Krah chamado Tepyarkwa, por outro.
De minha parte, proponho que a melhor soluo para a
definio de uma identidade cultural Java, que aqui no tem um
sentido de um todo coerente e fechado6, dar ouvidos aocontedo
da mitologia nativa, enquanto um modo de conscincia social
histrico dos Java a respeito do processo de construo de sua
1 4
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
prpria sociedade, ao mesmo tempo em que se procede anlise
da organizao social e da cosmologia7. Baseada no que osprprios
Java dizem atravs do discurso mitolgico8, que no se separade
uma conscincia histrica profunda, gostaria de sugerir ahiptese
de que a cultura e a sociedade Java so uma espcie de fuso
criativa de influncias Macro-J (Bororo em especial), Aruak(ou
Arawak),Tupi (em menor grau) e, agora, tambm dos brancos
(principalmente a tecnologia). Ao longo da narrativa mtica vosendo
apresentados os vrios povos que contriburam, alguns em maior
dose, outros em menor, para a formao dos Java, seja emtermos
de substncia fsica [os povos Ijwh, Kuratanikh, Wr,
Imotxi, Wou (Tapirap), Karaj, Werehina, Kuriawa(k)u]9, seja
em termos de bens culturais e materiais [os povosBisaru(k)r,
Ijwh, Kuratanikh, Wr, Karalu, Wou, Torohoni ou
Kanan, Karaj, Halylyra, Hryri Hetxi Tb, Mri,
Kuriawa(k)u, Koriminikh]. Dentre essa legio decontribuintes,
que no se esgota nesta lista, os trs grandes doadores desubstncia
e cultura so o heri mtico Tanxiw (do povo Ijwh, apresentado
como o ancestral tambm dos brancos), o lder Tlra e os outros
do povo Kuratanikh, e o povo Wr. Entre eles, contudo, no h
um mais especial que os outros, o verdadeiro ancestral.atravs
da relao entre esses trs, basicamente, com contribuies em
maior ou menor grau de outros, uns considerados ixju
(estrangeiros) inferiores, como os prprios Karaj, outros comoixju
de respeito, como os Wou (Tapirap), que vai se consolidandoa
cultura e a sociedade Java.
Note-se que o mito no fala em termos de uma ou mais
essncias originais sobre as quais influncias externas foram
sobrepostas e digeridas nenhum dos ancestrais mencionados so
1 5
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
referidos como os Java originais , mas apenas de relaes
entre fontes diversas que foram se fundindo ao longo do tempoe
construindo uma nova forma, original e nica. Ou de como acultura
Java pode ser vista como um conjunto de vrias partes que s
podem ser compreendidas se vistas na sua relao fusional entresi
e com o todo maior. A fuso relacional mencionada tratada de
forma sinttica no episdio sobre como o povo de Tlra funde-se
fsica e culturalmente com os Wr e os povos vizinhos que vm
prestar tributos ao grande il10. Tal acontecimentoextraordinrio
ocorre na aldeia Marani Hawa, o local onde Tlra surge doFundo
das guas, situada no interior da Ilha do Bananal eabandonada
desde a metade do sculo passado, mas ainda considerada umstio
sagrado e de importncia simblica especial. A aldeia MaraniHawa
apresentada no mito como o epicentro onde ocorrem as relaes
transformadoras, como uma espcie de caldeiro cultural em que
relaes entre diferentes ingredientes produzem uma criaonica.
Os Java no se vem como descendentes de um nico grupo ou
cultura ancestral imutvel, mas como o produto malevel, criativoe
original das vrias relaes entre povos diferentes queocorreram
ao longo do tempo.
A mitologia identifica, contudo, duas grandes matrizes
culturais, entre as vrias influncias menores de outros povos,que
teriam contribudo de forma mais substancial para aconstituio
dos Java atuais. O povo chamado Wr, que tambm teria surgido
do Fundo das guas em um local a leste da Ilha do Bananal,era
dotado de caractersticas que so facilmente associadas a umamatriz
cultural J-Bororo, relacionada aos povos do Brasil central. Osmitos
atribuem aos Wr algumas caractersticas J, tais como obelicismo
(acompanhado de captura de cativos e crianas) em sua fria
1 6
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
conquistadora [o modo como conquistam os bens culturais e
materiais de outros povos lembra a predao cultural oufagocitose
referida por Carneiro da Cunha (1993) e a conquista Kayapdos
nekretch (prerrogativas ou bens cerimoniais) e crianas deoutros
povos]11; os constantes deslocamentos espaciais, o intenso
cerimonialismo, a casa dos homens, a diviso entre espao
masculino e feminino da aldeia, o faccionalismo interno, oritual de
iniciao masculina e a Dana dos Aruans (baseada na relao
entre pai e tio materno e que se constitui uma variao do temados
nomes J, em especial Bororo, como tento argumentar na teseem
preparao). Tambm segundo o mito, a lngua Wr (depois
misturada com outras influncias) a base principal da lnguaJava
atual, situada pelos lingistas dentro do tronco lingsticoMacro-J.
J os traos culturais do povo de Tlra, enumerados pela
mitologia, correspondem, em termos gerais, aos mesmos traos
encontrados no alto Xingu. Em seu trabalho etno-arqueolgicosobre
o alto Xingu, Heckenberger (2001:30) prope que a cultura
xinguana atual, adaptao de vrios povos a uma base antiga de
lngua e cultura Aruak (representadas pelos Yawalapiti,Mehinaku,
Waura e Kustenau), faria parte de uma protocultura ou um
substrato Aruak maior e muito antigo, abrangendo vastasreas,
em que os Pareci e os Aruak xinguanos seriam consideradoscomo
os Aruak centrais (ver Hill & Santos - Granero, 2002 e
Heckenberger, 2002). Estes ltimos formariam uma provncia
cultural que compreende a vasta rea entre a regio leste doalto
Xingu e as terras baixas da Bolvia, chamada de PeriferiaMeridional
da Amaznia, situada entre duas grandes provncias
macroculturais (op.cit.:28), os Tupi amaznicos e os J doBrasil
central. As caractersticas centrais e milenares dos Aruakcentrais
1 7
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
ou dos grupos influenciados por eles (como todos osalto-xinguanos),
com variaes significativas em cada grupo, seriam: grandesaldeias
anulares relativamente permanentes e interligadas; economiasde
agricultura intensiva (roas fixas), baseadas na mandioca enos
recursos aquticos; integrao scio-poltica regional (comrcio,
casamento e cerimonialismo intertribal); ideologias basicamenteno-
ofensivas (no-predatrias); hierarquia social interna eascenso
hereditria chefia. Em suma, sedentarismo, regionalismo,pacifismo
e hierarquia. Embora sem uma anlise maior, o autor sugere(op.cit:
59) que os Bororo e os Karaj (cujo territrio seria o limitemximo
da expanso Aruak a leste) teriam sido influenciados por esse
padro, devendo, entretanto, ser tratados separadamente, porterem
uma histria especfica diferente dos grupos da periferiameridional.
Creio no haver dvidas que os Java (e seus vizinhos Karaj)
partilham de caractersticas essenciais do padro Aruakcentral.
Embora as aldeias no sejam circulares, os Java possuem uma
ideologia assumidamente pacifista (reao e guerra s quando
provocados, alm da identificao da coletividade masculina como
paraso celeste pacfico), o que seria um ethos receptivo ao outroe
no predatrio12; praticam o sedentarismo (as principaisaldeias
referidas nos mitos so praticamente as mesmas que existem at
hoje)13, a agricultura intensiva de roas fixas (em que amandioca
tem importncia central) e usam recursos aquticos (os Java e
Karaj so, antes de tudo, pescadores e senhores das guas);
marcam a diferena entre famlias nobres e comuns ou pobres
(hierarquia), principalmente atravs das famlias que herdam a
condio de il, chefia hereditria. Por fim, e no menos
significativo, os Java e Karaj partilham com todos os alto-
xinguanos no uma nomenclatura de parentesco com traos Crow-
1 8
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
Omaha, como os J do Norte14, mas uma variao consanguinizante
iroqus-havaiana do tipo dravidiano, comum na Amaznia (ver
Viveiros de Castro, 1993, 2002).
A anlise da mitologia informa que as contribuies de Tlra
e seu povo so, de forma inequvoca, associveis ao complexo
cultural alto-xinguano, a comear pela vocao pacifista dogrande
il, que ascendeu a este plano visvel com a tarefaextremamente
honrada, para os Java, de conciliao e pacificao dosconflitos
reinantes at ento. A hierarquia manifesta-se claramente nasua
condio nobre e superior de il, respeitada e admirada por
todos os povos, inclusive os guerreiros Wr, e quetransmitida
hereditariamente at hoje. O sedentarismo tambm explcito:
Tlra e seus descendentes viveram e morreram no mesmo lugar
onde surgiram, a aldeia Marani Hawa, ao contrrio dos
deslocamentos constantes (ou semi-nomadismo) dos Wr. O
regionalismo, que talvez no seja mais praticado atualmentecomo
era antes, revela-se, atravs do mito, na forma cooperativa epacfica
com que Tlra recebe os outros povos em Marani Hawa (onde
trocas culturais e matrimoniais, similares ao padroalto-xinguano,
so feitas) e abriga os fugitivos estrangeiros. O mito tambmrefere-
se prtica de recluso dos adolescentes (iwt) entre o povo do
Marani Hawa, caracterstica marcante do alto-Xingu15 e queainda
praticada entre os Java, embora cada vez mais rara16. E oque
igualmente revelador: o mito fala claramente que foi com o povode
Tlra que os Wr e os Java atuais aprenderam a terminologia
de parentesco e tratamento (do tipo iroqus-havaiano, como noalto-
Xingu), ou seja, o modo correto de se dirigir s pessoas17.
Como mostra uma leitura cuidadosa do mito, houve uma
sobreposio hierrquica, ao final das contas, do ethos pacficode
1 9
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
Tlra ao ethos guerreiro dos Wr. Embora os Java orgulhem-
se em dizer que descendem dos dois, eles reconhecem
explicitamente, nos comentrios feitos s narrativas, em tomde
crtica, que os Wr eram povos dominadores e insensveis. No
mito, os Wr submeteram-se disposio conciliatria de Tlra,
que abrigou os fugitivos Karaj e afastou seus perseguidores,os
guerreiros Wr, apenas com sua superioridade moral e nobre.Os
Wr foram embora, tendo deixado contribuies culturaismarcantes,
entre elas a Dana dos Aruans, mas Tlra e seus descendentes
continuaram em Marani Hawa desde ento. A anlise dacosmologia
e organizao social mostra que, de fato, os valores de contenodo
conflito pblico (auto-controle) e sedentarismo (estatismo),associados
neutralizao da alteridade e da transformao, sobrepem-se a
qualquer tica guerreira ou predatria que por acaso tenhafeito
parte, no passado, da formao da cultura Java. A forma
relativamente definida, porm permevel, que a cultura e asociedade
Java atual tomou vista como o produto de uma relao criativa
entre diferentes. Colocando isso em palavras mais precisas, eudiria
que a forma atual, em sua essncia, seria vista como o produtode
uma mediao entre opostos: o estatismo e o pacifismo Aruak
associam-se ao auto-controle masculino mais valorizado, oumelhor,
imagem que os homens tm de si nos mitos como maiscontrolados
que as mulheres; e o belicismo e o deslocamento espacial J
associam-se ao suposto maior descontrole feminino, uma
caracterstica altamente repudiada (ver Rodrigues, 1993)18.
O fato do ponto de vista masculino associar-se s influncias
Aruak significa uma posio hierrquica superior dos valoresAruak
em relao aos valores J, pelo menos no sentido limitado da
oposio entre paz e guerra, estatismo e movimento. Opermanente
2 0
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
esforo masculino em controlar as mulheres (ou o maior valordas
influncias Aruak em relao aos J) corresponde, em um outro
nvel, dialtica constante entre ordem e desordem, entre atentativa
masculina de fixar e repetir o que foi criado, por um lado, ea
existncia inevitvel de transformaes e conflitos associados
feminilidade. A cultura, enquanto totalidade mutvel que setenta
fixar, vista como permanente embate entre foras e valores
contraditrios, entre o pacifismo Aruak e o belicismo J, ou entreo
princpio conservador masculino e o transformador feminino.Os
Java, diz o mito, no so agora nem Aruak nem Macro-J, mas o
produto da relao histrica entre ambos (e entre outros, masde
influncia menor), criadora de uma nova totalidade, que nica,
mas contm em si, transformados, os componentes do passado.
A revelao, para mim, de que a cultura nativa vista
implicitamente como o produto de relaes e fuses
transformadoras, e no como uma estrutura fixa que se repetedesde
sempre, talvez no tivesse tanto impacto no fosse averdadeira
obsesso, observada desde o comeo, que os Java tm em evitar
e negar as misturas e a alteridade, demonizando os outros(mulheres,
afins ou outros povos) e as misturas em geral, seja no planodas
prticas matrimoniais19, seja no plano cosmolgico e ritual, emque
o objetivo maior da Dana dos Aruans conectar os humanos
terrestres e sociais, ainda que apenas simbolicamente, com omundo
sem outros, onde tudo se repete, nada criado. De um lado, omito
mostra basicamente o processo de construo da sociedade ecultura
atual atravs de vrias relaes de trocas inter-tnicas, emvrios
nveis, como casamentos, trocas culturais e guerras, ou seja,atravs
de vrias misturas. So vrios os exemplos de casamentos inter-
tnicos que contriburam para a sociedade Java tomar a formaatual.
2 1
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
Por outro lado, a anlise da organizao social mostra, ao
contrrio, que a prtica atual a endogamia de aldeia e deparentela,
que os Java condenam firmemente os casamentos inter-tnicos e
praticam a troca restrita (casamento preferencial com primos
cruzados bilaterais distantes), dentro de um ideal de cognao
(Ptesch, 2000:206) em que todos do grupo so pensados como
parentes; e que a identificao de uma criana com os Aruans
(ancestrais mgicos imortais e mascarados) uma tentativa de
suprimir da conscincia o fato bsico que ela o produto de uma
relao fsica e social entre diferentes, um homem e umamulher.
Alm disso, os Java possuem uma terminologia de parentesco
consanguinizante, referindo-se aos afins com tecnonmicos(ver
See AlsoA Grande Mãe brasileira – Teia de TheaMelhores nomes femininos tendência para 2023 (+ 100 nomes)A lenda de Shahmaran, a rainha das cobras - Portal Divina Feminina: SABERES ANCESTRAIS do SAGRADO FEMININOOs mais belos poemas escritos por autoras brasileiras - Portal Divina Feminina: SABERES ANCESTRAIS do SAGRADO FEMININOPtesch, 2000). Uma das piores formas de xingamentorelacionar
em pblico os antepassados estrangeiros (ixju) de algum,embora
no exista um nico Java que no descenda de um povo ixju. Os
casamentos inter-tnicos so estigmatizados, mas a constituioda
sociedade Java, narrada na mitologia, produto de casamentos
com estrangeiros, ou seja, h um reconhecimento implcito de quea
condio de estrangeiro est, em algum nvel, dentro de todos.
Tudo isso insere a cosmologia e as prticas Java dentro de
uma temtica amerndia maior da desconfiana em relao s
diferenas, tidas como perigosas, mas indispensveis, como jfoi
apontado por Kaplan (1984). No se deve, entretanto, confundiro
desejo de afastar a alteridade, manifesto nas prticasmencionadas,
com um modelo nativo de sociedade minimalista, monognica,
fechada ou amorfa internamente. Assim como os J, os Java
possuem elaborados rituais e marcaes internas, seja na formade
metades cerimoniais, classes de idade ou casa dos homensversus
espao feminino etc. Tambm no estamos inserindo os Javadentro
2 2
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
da oposio entre sociedades fechadas ou sem exterior, que
incorporam a diferena internamente (centro-brasileiros), e
sociedades sem interior, que projetam a diferena ou afinidadepara
fora (amaznicos). O desejo obsessivo de purificao revela, ao
contrrio, a conscincia histrica de que toda a realidadesocial
produto de relaes intrnsecas com a alteridade, no havendouma
separao entre um dentro, onde se salientam as diferenas ou
se negam as trocas e as relaes, e um fora, em que aexterioridade
desconsiderada ou para onde as diferenas so projetadas e
valorizadas. H o reconhecimento de que a alteridade condio
sine qua non de qualquer relao social, seja no plano dasrelaes
domsticas (entre homens e mulheres, parentes e afins),locais
(entre metades opostas) ou supra-locais (entre os Java e os
estrangeiros), todas traduzidas simbolicamente como relaesentre
um princpio masculino e um feminino.
Elaborando de um outro modo, veremos que os Java no
oscilam entre um interior inexistente e um ou vrios centrosno
exterior, de um lado, e um centro interno e um exteriorinexistente,
de outro, ou seja, os Java no so uma sociedade amorfa
internamente, nem uma sociedade sem exterior. Na verdade, o
centro justamente a ponte entre o interior e o exterior, se quese
pode dizer isso, dissolvendo essa oposio entre dentro e fora.O
modelo nativo reconhece que tanto dentro quanto fora adiferena
uma realidade inescapvel: as diferenciaes internas so
marcadas com a mesma nfase dos J, ao mesmo tempo em que a
relao com a exterioridade intrnseca sociedade, como para os
Tupi-Guarani; mas tanto dentro quanto fora tenta-seigualmente
neutralizar essas trocas, relaes, diferenas. O conceito Javade
2 3
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
socialidade reside justamente nessa mediao entre umarealidade
de diferenas, seja interna ou externa, e um desejo deelimin-las,
no existindo uma oposio entre um outro interno e um externoou
a escolha entre um (J) e outro (Tupi-Guarani).
A tentativa de criar a fico de que a tradio Java
pura, ou pelo menos de purificar a sua condio intrnseca derelaes
entre outros, passou a ser o objetivo maior da coletividademasculina
desde os tempos da criao. No que se refere s relaesinternas,
essa tentativa toma forma atravs da Dana dos Aruans e da
negao da afinidade gerada pelo matrimnio; quanto s relaes
externas, ocorre principalmente atravs da repetio e da
cristalizao artificial das criaes inovadoras, produto defuses
entre povos diferentes, no discurso mtico, utilizando-se dosclssicos
ditos que encerram os episdios mitolgicos: por isso at hoje
assim, nada mudou. Ao final das narrativas, as criaes so
reduzidas a repeties do mesmo, congeladas propositadamente
em uma forma fixa20. O que um esforo imenso de neutralizar a
alteridade, vista como indissocivel das mudanas, uma vez que
toda criao concebida como produto de uma relao
transformadora entre diferentes, potencialmente conflitantes,ou
seja, de uma mistura. E toda mistura, ou melhor, todo produtode
uma relao, tido como poludo, contaminado com a alteridade.
Assim, a cultura Java seria concebida, ao mesmo tempo, como
uma totalidade constituda de transformaes intrnsecas,produto
de relaes fusionais entre diferentes (internos e externos), eda
tentativa permanente e relativamente bem-sucedida dos atores
sociais masculinos de purific-la, fixando-a, repetindo-a, ouseja,
como uma paradoxal mistura pura.
2 4
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
O Territrio da totalidade (Butu Hawa)21
Para poder responder pergunta inicial sobre quem so os
Java, levando em considerao as respostas elaboradas pelaprpria
conscincia social nativa, necessrio incluir a relao dos Java
com as outras dimenses no visveis. Afinal, assim como eles
percebem a si prprios dentro do contexto de relaes com ospovos
da dimenso terrestre e visvel, os outros povos que habitam a
vastido do cosmos tambm fazem parte dessa identidadeconstruda
sempre na relao com a alteridade. A totalidade csmica ,antes
de tudo, humana, na medida em que todos os seres do cosmos,
sociais ou no, so em algum grau humanizados, sejam osanimais,
as rvores, os ancestrais mgicos, os monstros invisveiscanibais
ou os astros, concebidos como corpos humanos. Apresento aqui
apenas uma descrio espacial do mundo em sua totalidade, dos
lugares onde habitam os personagens csmicos, argumentandoque
os Java no concebem dois eixos espaciais opostos (um verticale
um horizontal), como sugere Ptesch (1993, 2000) a respeitodos
Karaj, mas um nico eixo corporal uma vez que o mundo
visto como um grande corpo , em que a cabea e os ps domundo,
respectivamente, so equivalentes simblicos do leste, do rioacima
e do nvel superior, de um lado, e do oeste, do rio abaixo e donvel
inferior, no outro extremo oposto.
O espao aberto em que vivem os humanos terrestres, o
Ahana bira, definido sempre em relao aos espaos fechados
(o nvel sub-aqutico e o celeste) que j existiam antes doshumanos
do mundo sub-aqutico resolverem conhecer este plano em que
vivemos. A diviso ternria bsica do cosmos entre o Berahatxi,
um nvel sub-aqutico (abaixo dos leitos dos rios) e fechado, oBiu
2 5
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
Wtyky, o nvel celeste, igualmente fechado, e o Ahana bira, o
nvel terrestre, aberto e amplo, j foi tratada em outrostrabalhos22.
Aqui sero refinados alguns conceitos e ser mostrado que cada
parte e o todo so pensados como corpos humanos, o que no foi
explorado anteriormente. bira [lado (bira) do rosto ()] a
face lateral de uma pessoa, entre as orelhas e a ma dorosto,
enquanto ahana tem o sentido de fora, de modo que os humanos
terrestres em geral so Ahana bira Mahdu, ao p da letra, o
Povo com a Face de Fora. A humanidade tambm Itya mahdu,
o Povo do Meio (embora essa expresso tenha o sentido de um
etnnimo especfico dos Karaj e Java), porque, entre outrascoisas,
o Ahana bira situa-se no meio exato do cosmos, entre o nvel
celeste, acima, e o nvel sub-aqutico, abaixo.
Para se localizar espacialmente o nvel sub-aqutico, usa-se
a expresso wahetxiraworen, o que est dentro do que est
embaixo de ns, em que hetxi (ndegas) associa-se ao que est
embaixo e rawo refere-se a dentro da cabea/corpo, com
sentido figurado de dentro da terra23. Ou seja, o espaoterrestre
fechado que est abaixo do Ahana bira. Este espao chama-se
Berahatxi, as ndegas (hetxi) do rio (bero), em sentidoliteral,
ou o que est abaixo (do leito) do rio24. J o nvel celeste,Biu
Wtyky (ou Biu Wratyky), tem o sentido literal de invlucro ou
pele (tyky) da barriga (w) da chuva (biu), em que wtyky temo
sentido geral de corpo, ou seja, o espao fechado que contm a
chuva dentro de si pensado como o corpo da chuva, tambm
chamado simplesmente de Biu (que a chuva ou todo espao
superior: o teto, a tampa, o avio, o alto de um prdio ou ocu
esto no biu)25. Para localizar o Biu, diz-se que estwaratyaren,
no centro (tya) de nossas (waren) cabeas (ra), no sentido de
2 6
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
que est acima dos seres humanos, mas ocupando o centro doespao
superior. Assim como as ndegas associam-se ao que estembaixo,
a cabea associa-se ao que est em cima. A posio exata ecentral
do Biu no nvel superior, em relao s cabeas/pessoas, Biu tya
ou Bd tya.
Os trs nveis integram Butu Hawa, o mundo, literalmente
o territrio da totalidade26, cujos limites so definidos e paraalm
dos quais no h mais nada. Seus limites so bd knana ou
bd wsi (o fim do mundo). Os limites externos do Biu e do
Berahatxi tambm so bd knana, porque eles coincidem com
o fim do mundo total, como pode ser visto no mapa ao lado(n.5)27,
um dos vrios mapas e desenhos feitos por um xam Java. Esse
territrio total concebido como um corpo humano, dotado deuma
passagem interna, por onde o Sol (Txuu) caminha. O Sol, comletra
maiscula, o nome de uma pessoa que usa o raheto, cocar, de
cor vermelha, como o fogo (que no desenho aparece nas duas
extremidades do mundo), que o heri Tanxiw conquistou do
Rararesa (o humano chamado Urubu-Rei), em episdio mtico
famoso, para os humanos. Nas extremidades do mundolocalizam-
se uma entrada e uma sada, por onde o Sol entra (Txuurotena)
e sai (Txuu lna)28, anlogas boca e ao nus. So conceitos
espaciais, referidos pela partcula na (lugar): o lugar de sada eo
lugar de entrada do Sol. A estrada do Sol, que passa somentepelo
Biu e pelo Berahatxi, como veremos (o caminho em vermelho no
mapa), Txuu ryy, sendo que ryy tem tanto o sentido de boca
quanto caminho, porque a boca pensada como o incio docaminho
da comida dentro do corpo, o caminho cujo fim o nus. Os trs
nveis csmicos possuem dois ps/pernas (ti) cada um, de forma
que os ps do nvel inferior so tambm os ps do mundo todo. Em
2 7
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
MAPA 5: Butu Hawa, o territrio da totalidade
2 8
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
todos os trs nveis existe a terra (suu) sobre a qual seushabitantes
vivem. Suu era uma pessoa antigamente, que foi transformadapor
Tanxiw na terra em que todos pisam, e por isso os trs nveis
possuem ps/pernas atualmente.
As passagens por onde o Sol entra ou sai so do mesmo tipo
que as passagens que os humanos sub-aquticos usaram para
ascender ao nvel terrestre no incio dos tempos (In lna)29.No
so tneis, apenas passagens entre os dois mundos, as mesmaspor
onde os xams viajam para atingir as dimenses invisveis e por
onde passam os aruans30, os outros seres que participam dosrituais
Java, e as almas humanas (dos que morrem e reencarnam) que
transitam pelos diversos nveis. Todos esses viajantescsmicos,
assim como o Sol, entram pelo Txuu rotena e saem no outromundo
pelo Txuu lna, ou seja, quem vai do nvel terrestre (ou doceleste)
para o nvel sub-aqutico, por exemplo, entra na passagem pelo
oeste terrestre (Txuu rotena) e sai no Fundo das guas pelo
leste deles (Txuu lna deles). E vice-versa. Enquantoterritrios
definidos, todos os trs so Hawa (Biu Hawa, Berahatxi Hawa e
Ahana bira Hawa). Como j foi dito, Biu Hawa o Biu wtyky
do Ahana bira, ou seja, o nvel celeste o corpo da chuva que
cai no nvel terrestre intermedirio. A chuva que cai na terra eas
nuvens celestes (bd bina ou bd wtyky hd) saem pelos ps
do Biu (Biu wtykyti). De modo anlogo, o Ahana bira o
Berahatxi Biu wtyky, ou seja, o nvel terrestre o cu dos que
moram no nvel sub-aqutico. O nvel terrestre uma espcie de
teto do Berahatxi, tambm sendo pensado como um corpo (wtyky)
ou invlucro da chuva (e das nuvens) que cai no mundosub-aqutico,
e que tambm sai pelos ps do Ahana bira. Entre o nvel celeste
e o terrestre h um espao vazio, representado no mapa. Asuperfcie
2 9
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
do nvel sub-aqutico, por onde passa o caminho do Sol, estabaixo
da gua (b) dos rios do nvel terrestre, embora no desenho se
tenha outra impresso, dada a dificuldade que o xam teve em
expressar graficamente uma realidade, no mnimo,tridimensional.
Tudo que aparece em azul abaixo do Ahana bira Hawa a terra
(suu) do nvel sub-aqutico. Os seus habitantes, porm, moram
apenas na superfcie (ou margem superior) desse ambiente,
representada no mapa n 3, que se refere apenas ao BerahatxiHawa.
O lugar onde o Sol se pe (Txuu rotena), no nvel terrestre,
conhecido tambm como bd br, as costas do tempo, lugar
ou mundo, o que tem relao com a palavra wabd (meu mundo,
tempo ou lugar), usada para designar os cemitrios. Em outro
trabalho (Rodrigues,1993), mostro que os cemitrios Javasituam-
se sempre na direo oeste das aldeias, de modo que bd br
seria as costas (no sentido de atrs) do cemitrio (bd), o que
coincide sempre com o lugar onde o Sol se pe (Txuu rotena).O
lugar onde o Sol surge (Txuu lna), por sua vez, chama-setambm
biura (cu ou chuva branca), um outro conceito para o leste,o
que tem relao com o fato do Cu ser a origem do Sol e daclaridade
no mito em que Tanxiw conquista o Sol do Urubu-Rei celeste.
Biura (leste) e bd br (oeste) so, junto com as noes de rio
acima [ib(k)] e rio abaixo (iraru), as mais importantesreferncias
espaciais Java, cujos significados mais amplos seroretomados30.
A trilha do Sol situa-se na superfcie do nvel sub-aqutico e
do nvel celeste. Quando o Sol caminha pelo cu (a trilha azuldo
mapa n4, representando Biu Hawa), ele ilumina o nvel celeste eo
nvel terrestre ao mesmo tempo, pois h apenas um espao vazio
entre ambos. O Sol que surge a leste, do ponto de vista doshumanos
3 0
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
terrestres, o mesmo Sol que est comeando a sua caminhada no
Biu (Cu), como pode ser visto no mapa n5 (que tem o ponto de
vista dos humanos terrestres, por isso o Txuu lna queaparece
no mapa o leste terrestre e celeste), no sentido lna pararotena.
Quando o Sol faz essa caminhada celeste, o nvel terrestre e oCu
ficam iluminados, mas o nvel sub-aqutico, imediatamenteabaixo
do nvel terrestre, permanece escuro, pois este ltimo impede quea
luz chegue at l. Enquanto dia na terra ou no Cu, porexemplo,
o ponto intermedirio exato do caminho do Sol corresponde aomeio-
dia (Txuu tya, o meio do Sol); o mesmo momento, no Fundo das
guas, o meio ou centro da noite (ruw tya), o seja, a meia-
noite do nvel abaixo das guas, e vice-versa. A estrada celestedo
Sol (Txuu ryy), durante a noite, corresponde Via Lctea queos
humanos terrestres vem. Ao entrar a oeste, do ponto de vista
terrestre, o Sol est surgindo a leste, do ponto de vista dos
moradores do Berahatxi. Ou seja, ao se pr aqui, o Sol nasce l,o
Txuu rotena do Cu e da terra so o Txuu lna do Fundo das
guas e vice-versa32.
A utilizao da palavra Txuu rotena (lugar de entrada do
Sol) para o oeste e Txuu lna (lugar de sada do Sol) para
leste revela que o caminho do Sol s pensado pelos humanos
terrestres (ou celestes) em sua relao com os humanos das
profundezas aquticas e vice-versa: pois o leste, se o ponto devista
terrestre fosse auto-centrado, no onde o Sol sai, mas onde aluz
do Sol entra no Ahana bira, assim como o oeste no deveriaser
onde o Sol entra, mas onde o Sol sai do nvel terrestre. Stem
sentido chamar o oeste de entrada do Sol a partir de um pontode
vista relacional, em que os humanos do nvel terrestre e celestes
se pensam atravs da relao com os humanos do mundo inferior e
3 1
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
MAPA 3: Berahatxi Hawa, o territrio do Fundo das guas
3 2
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
MAPA 4: Biu Hawa, o territrio do Cu
3 3
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
vice-versa. Os Java so o Povo do Meio porque o ponto de
vista deles no est de um lado ou outro, mas na relao entreos
extremos, o equivalente do meio.
Como j foi apresentado em maior profundidade antes
(Rodrigues, 1993), o oeste associado pela escatologia nativaaos
lugares escuros e invisveis que existem abaixo do cemitrio
(wabd), onde vivem os que morreram enfeitiados ou derramando
sangue (assassinados), em sofrimento e estado de carncia
permanente (sem abrigo ou alimentao adequada, sem os
parentes), onde todos so estranhos, com desconforto fsico e
psicolgico total. Em um primeiro momento, durante o perododo
luto, aproximadamente, todos que morrem tornam-se (k)uni, aalma
que se transforma em um estranho e desconhece seus antigos
parentes, perseguindo e aterrorizando os vivos noite. Este o
primeiro e mais repudiado estgio da vida aps a morte,associado
poluio, perda de energia vital, ao desespero, desagregao
familiar, ao movimento excessivo, escurido, fome de alimento
e afeto, ao tempo acelerado, inconscincia [o (k)uni no sabe
que morreu] etc. Depois a pessoa pode seguir para diferentes
destinos, dependendo de como foi a sua morte e dos acordosque
seus parentes fizeram com os xams, os condutores das almasdos
mortos. Seu destino depende tambm do conselho secreto dos
xams e woros (palavra polissmica, mas que aqui tem o sentido
de mortos que vivem no wabd) que se rene quando algum
morre. Os que morreram perdendo sangue (de corpos abertos,
perdendo energia vital, a pior morte de todas) so enterrados coma
face virada para o lado onde o Sol se pe e permanecem como
(k)uni eternamente na Terra dos Ensangentados (Hure mahdu
Hawa), o pior dos infernos, localizada no wabd invisvel,abaixo
3 4
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
da terra, a oeste. Os que morreram enfeitiados (o que incluitodo
mundo, com exceo dos assassinados) podem virar woros e viver
em no wabd tambm, mas separados da Terra dos
Ensangentados pelo Rio dos Mortos (Rubu Bero), em um lugar
no to ruim como o dos primeiros, embora tambm associado ao
sofrimento. Dependendo das negociaes secretas entre o grupo
de xams e entre os xams e os parentes dos mortos, a pessoa
tambm pode ir para o Berahatxi, o Fundo das guas, localizado
abaixo do nvel terrestre, caracterstica comum dos trsdestinos
mencionados.
Os parentes dos xams (e no s os xams, como entre os
Karaj)33 podem deixar a condio de (k)uni e ascender para o
nvel celeste, associado ao leste, para onde o rosto dos mortosem
geral deve ser virado ao serem enterrados. Os mortos que vo
para o Fundo das guas ou para o nvel celeste transformam-se
em tykytyby (literalmente pele velha), um dos conceitos Java
para as diferentes condies de vida aps a morte. No cu vivem
os heris criadores originais, para onde todos os vivos desejamir
depois de mortos. o lugar da abundncia, da juventude ebeleza
eternas, do estatismo, dos corpos fechados (em que no hperdas
energticas), da reproduo mgica, onde o Biu mahdu (Povo do
Cu) vive em plenitude total, sem dvidas a pagar ou qualquertipo
de alteridade (afins, esposas, estrangeiros). Em vriosmomentos
importantes da vida, as pessoas devem ficar com ocorpo/rosto
virados para o leste, de forma a se conectar com as emanaes
positivas desse plo espacial e temporal desejado (pois ocontrrio
brbuna, faz mal).
No que se refere ao destino escatolgico, a Terra dos
Ensangentados e o Cu so os extremos mximos, no meio dos
3 5
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
quais situa-se o nvel terrestre (onde se faz a mediao socialentre
um mundo s de outros e um mundo sem outros, igualmente no-
sociais). Em termos de localizao espacial, o destino desejado(Biu)
associa-se ao leste, enquanto o repudiado (wabd) estclaramente
associado ao oeste. Entre os dois extremos h uma gradaoentre
o perfeito e o terrvel, em que o nvel sub-aqutico uma espcie
de paraso imperfeito, pois l tudo (comida, ambiente, oshabitantes
etc) menos perfeito que no Cu; e o wabd propriamente dito
um inferno no to ruim quanto a Terra dos Ensangentados. Em
meu trabalho anterior (Rodrigues, 1993), propus que, em termosde
contedo, o nvel terrestre estaria em uma posio intermediriaentre
o nvel celeste e o nvel sub-aqutico, de um lado, e os doislocais do
wabd, de outro. Tambm reconhecia que, em termos de localizao
espacial, essa proposta era problemtica, uma vez que Cu (emcima)
e Fundo das guas (embaixo) opem-se claramente, estando onvel
terrestre entre ambos. Agora, luz de novos dados e de uma
compreenso mais profunda, percebo que a localizao espacial
reflete, de fato, o que os Java pensam quanto ao contedosimblico
dos nveis cosmolgicos.
A oposio a que esto se referindo no entre um paraso
perfeito (Biu) e um imperfeito (Berahatxi), de um lado, e osdestinos
temidos de outro, como eu pensava, mas entre um parasoperfeito
(Biu), simplesmente e todos os outros menos perfeitos outerrveis
(Berahatxi e o wabd). O nvel sub-aqutico (Berahatxi) um
mundo sem mortes e sem outros, para onde alguns dosprimeiros
humanos que saram debaixo resolveram retornar aps encontrara
morte aqui, mas no to pleno quando o celeste. Afinal, no h
nenhum desejo ou curiosidade pelo diferente onde tudoperfeito:
foram os humanos aquticos (e no os celestes) que decidiram
3 6
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
ascender ao nvel terrestre porque aqui havia comidas maisgostosas,
o espao era amplo e, principalmente, havia a luz do Sol queeles
no conheciam. A subida mtica primordial revela algum tipo de
insatisfao com a vida no Fundo das guas, um desejo deconhecer
o outro ou o novo. E desejos, como se sabe, s existem onde h
carncias. Enquanto um plano de carncias, ainda que mnimas,
quando comparadas ao wabd, o nvel sub-aqutico ope-se
abundncia e plenitude do nvel celeste, situando-sesimbolicamente
junto com os destinos escatolgicos repudiados, embora hajagrande
diferenas gradativas entre eles.
Quanto localizao espacial, os novos dados tambm
mostram que o nvel sub-aqutico e o wabd situam-se no extremo
oposto ao nvel celeste. Agora sabe-se que a passagem que os
xams, aruans ou mortos usam para chegar ao Fundo das guas
ou ao nvel subterrneo invisvel a mesma passagem que o Sol
utiliza para entrar (Txuu rotena) no mundo de baixo. O oeste
terrestre (que coincide com o oeste celeste) a entrada paraos
mundos que esto abaixo, de modo que ir para oeste ir parabaixo
tambm (ver mapa n5). O Sol e todos que morrem,transformando-
se em (k)uni, deslocam-se em um primeiro momento para ooeste
e para baixo (onde est o wabd). A escurido, em grausdiversos,
associada morte ou aos mundos inferiores dos mortos quesofrem,
em oposio claridade da vida eterna no nvel celeste34.Afinal,
foi para conhecer a claridade do Sol, tambm, que o povo donvel
sub-aqutico resolveu ascender ao nvel terrestre, como conta omito35.
Segue-se ento que tudo que est abaixo do nvel terrestre
visvel (como o wabd ou o nvel sub-aqutico), embora haja
gradaes de distncia (assim como de contedo) entre eles, est,
3 7
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
de algum modo, a oeste, ou seja, para alm da passagem onde oSol
entra. Pois sempre que o Sol entra, do ponto de vista terrestre,ele
j est, ao mesmo tempo, descendo para os mundos inferiores,no
havendo, portanto, distino espacial entre o oeste e o abaixo.Mas
importante enfatizar que o que est abaixo, o nvel inferior,tem
diferentes contedos simblicos, diversamente ao que estacima,
que se define como um nico Cu paradisaco. O nvel inferior
tanto o paraso imperfeito de onde os humanos surgiram (onvel
sub-aqutico) quanto o destino terrvel de todos, em umprimeiro
momento, aps a morte (wabd), contendo uma duplicidade de
significados no existente no nvel celeste. Por outro lado, doponto
de vista terrestre, quando o Sol surge do Fundo das guas (de
baixo e a leste), est indo em direo ao Cu (para cima), demodo
que ir para o leste equivale a ir para cima (o Cu). Assim, ocaminho
a leste possibilita a ascenso celeste do Sol ou de qualqueroutro
viajante csmico. Deste modo dissolve-se a contradio aparente
entre um eixo vertical (abaixo/em cima) e um horizontal(leste/oeste).
Na verdade no existem dois eixos espaciais opostos, mas ums,
constitudo de um centro terrestre visvel (Ahana bira) entre
dois opostos assimtricos (Fundo das guas/oeste eCu/leste)36.
Resta ainda contemplar a importante orientao espacial
baseada na oposio entre ib(k) (rio acima) e iraru (rioabaixo),
extremos associados s metades cerimoniais Saura (macaco) e
Hiretu (gavio), respectivamente. Foi somente aps a anlise
etimolgica dessas palavras que sua significao simblicaalcanou
uma complexidade bem maior, at ento desconsiderada. Irefere-
se ao que dele, e raru tem o sentido metafrico de raiz(iraru,
razes dele), que deriva de uma analogia com as coxas de uma
pessoa, pois ru pode ser as coxas (waru, minhas coxas) e
3 8
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
tambm o nus. As razes de uma planta so o que esto para
baixo dela, assim como as coxas e o nus de uma pessoa (se a
cabea for tomada como referncia do que est em cima). Wararu
(minhas ndegas/coxas) pode se referir s ndegas e coxas de
uma pessoa sentada, como se ela estivesse enraizada no cho.Ira
cabea dele, mas pode ter o sentido geral de corpo dele, uma
vez que tanto (face) quanto ra (cabea), como j foi dito,muitas
vezes substituem a noo de corpo nas expresses. Assim, iraru
algo como as coxas do corpo dele, no sentido que so a partede
baixo do corpo de algum, assim como as razes de uma plantaso
o que est abaixo dela. As coxas so o que esto abaixo porque
o corpo humano, assim como o cosmos, pensado como uma
totalidade tripartida: tanto a w (a parte externa da barriga)quanto
o wo (o que est dentro da barriga) so considerados como Intya
ou um tya, o meio ou centro (tya) do corpo (um) dos seres
humanos (In). A w (barriga) o centro corporal, associado
simbolicamente ao nvel terrestre, situado entre dois opostos
assimtricos, a cabea (nvel celeste, acima) e as pernas/ps(nvel
sub-aqutico, abaixo)37.
A palavra ib(k), traduzida geralmente como rio acima,
tambm reveladora. , como j foi dito, face ou rosto. B
uma palavra mais antiga, e agora pouco usada, que significacor
branca (referida mais comumente pelo termo ura), e que seaplica
aos tubrculos ou frutas verdes, que no amadureceram ainda,ou
seja, que ainda esto no comeo de suas vidas. uma palavra
aplicada tambm s crianas recm-nascidas: a expresso
toho(k)u ibm roirri, por exemplo, refere-se ao beb (tohoku)
ainda muito novo (ibm) que est deitado (roirri), e que porisso
se deve segurar com cuidado. Ib(k) seria, mais ou menos, o
3 9
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
rosto ainda no maduro ou branco dele, ou seja, refere-se aum
rosto (ou corpo) em seu estgio inicial de vida. A cor brancasurge
associada ao que est em um estgio inicial, no maduro, ou o
que no foi transformado ainda, ou seja, o comeo de algo.Como
j vimos antes, as cabeas (e rostos) situam-se simbolicamente
junto com os comeos, em oposio s pernas e ps, situadas
nos fins, de modo que h uma dupla associao da palavra ib(k)
com o comeo de algo, mais especificamente, o comeo de umrio.
Por outro lado, sabe-se tambm que as cabeas/rostos
simbolizam o que est em cima, em oposio s pernas e ps,
smbolo do que est em baixo, no sendo difcil concluir que oque
est em cima tambm o que est no comeo, e que o que est em
baixo tambm o que est no fim de algo. Tal associao
corroborada pelo fato que a cabea (ra), onde se situa rostoou
face () e que est em cima, tambm tem seu significado ligado
ao comeo de algo: por exemplo, as msicas do tipo irank, que
eram do povo de Tlra, cantadas at alguns anos atrs, eram
msicas lentas que anunciavam o comeo das danas, comeo este
referido pela palavra ra. H ento a possibilidade de que ocomeo
de um rio, ao ser pensado como algo que est acima, estejaassociado
ao nvel celeste. Essa hiptese confirmada na medida em que o
leste, ligado simbolicamente ao Cu (Biu), que est acima,referido
pela palavra biura (cu branco), e o sentido rio acima,referido
por uma palavra que contm a partcula ib, contm a noo de
branco tambm. Ento, pode-se dizer que, assim como o que
est rio abaixo tem a ver com o que est em baixo e no fim (as
pernas), aquilo que est rio acima tem a ver com o que estacima
e no comeo (o rosto, a cabea). Dito de outro modo, quantomais
algum se desloca no sentido rio acima, mais prxima estapessoa
4 0
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
estaria do leste e da passagem para o nvel celeste; e quantomais
se desloca no sentido rio abaixo, mais prxima estaria do oeste eda
passagem para o nvel sub-aqutico (e as outras dimensesinvisveis
situadas abaixo do nvel terrestre). Ao que parece, o incio docaminho
do Sol (no Cu) pensado tambm como o incio do caminho do rio
(na terra), assim como o fim do caminho solar celeste coincidecom
o fim do caminho do rio no nvel terrestre. O rio em questo,claro,
o Araguaia, o grande rio do territrio Karaj e Java.
Teramos ento uma associao entre o leste, a nascente do
rio (sul), o nvel celeste (ou o que est acima) e a cabea/rostode
um corpo (entre o ibk, o biura e o Biu). No outro extremo,entre
o oeste, o fim do rio (norte), o nvel sub-aqutico (ou tudo queest
embaixo) e as pernas/ps de uma pessoa (entre o iraru, o bd
br e o Berahatxi). De modo que o eixo horizontal sul/norte(que
coincide com rio acima e rio abaixo no Araguaia) tambmestaria
aglutinado ao eixo nico que funde leste/oeste eacima/embaixo,
discutido antes. Toral (1992) j havia sugerido que odeslocamento
histrico dos Karaj para o sul, rio acima (o que no ocorreucom
os Java), seria uma continuidade do mesmo impulso doshumanos
das profundezas que ascenderam ao nvel terrestre, refletindoum
desejo de alcanar o nvel celeste. Embora sem muitos dosdados
que so expostos aqui ou sem a compreenso de uma lgicacorporal
subjacente, em Rodrigues (1993:425-426) havia uma proposio
preliminar de que haveria uma coincidncia entre leste, sul e aaldeia
do cu, de um lado, e oeste, norte e o wabd, de outro.
ilusrio, contudo, pensar que esses extremos opostos do
grande eixo espacial so pensados como permanentemente
apartados ou isolados um do outro. Um tema recorrente da
cosmologia Java, analisado em detalhes anteriormente (idem),
4 1
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
que tudo que inicia um movimento retorna s origens, de modoque
caminhar para a frente , a partir de algum ponto, voltar parao
comeo. Para o ponto de retorno existe o conceito essencialde
tya, que se refere justamente ao ponto intermedirio (o meioou
centro) entre as extremidades, a partir do qual tudo que vaicomea
a voltar. Assim, o meio-dia, chamado de Txuu tya, o centro(do
caminho) do Sol, o ponto a partir do qual entende-se que oSol,
em seu percurso celeste, comea a retornar ao ponto final (ooeste),
que o incio (leste) de sua caminhada pelo nvel sub-aqutico.Do
mesmo modo, a estao da cheia (beora) considerada o ponto
tya de um ciclo anual de chuvas, em que o esvaziamentoprogressivo
do rio concebido como um retorno das guas s cabeceiras (e
no como seu escoamento em outro rio ou no mar, como parans)38.
O fim da vida na terra [enterro a oeste e descida do (k)uniao
wabd situado embaixo] sempre uma volta origem primordial,
uma descida a um espao situado abaixo do nvel terrestre (deonde
os humanos mticos ascenderam), mesmo que depois as almas
tenham destinos diferentes. Em 1997/8, obtive a confirmao da
informao anterior de que durante o enterro secundrio(titarasa,
tirar os ossos), aproximadamente um ms depois do primeiro
enterro, o tempo de durao do luto, o cadver era colocadodentro
de uma urna funerria (watxiwii) na posio fetal, a cabeaprxima
das pernas/ps, simbolizando o reencontro do fim com ocomeo39.
Todo rio, assim como o rota solar, o ciclo de vida, o mundoe
o corpo humano, possui um ponto intermedirio, chamado berotya,
centro (tya) do rio (bero), em relao a duas extremidades
assimtricas. No caso do Rio Araguaia, a Ilha do Bananal
corresponde ao bero tya. Tanto o comeo como o fim dos rios,ou
seja, as duas extremidades, so chamados de bero knana
4 2
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
(extremidades do rio, o fim do mundo). A coluna vertebral deuma
pessoa (tityby) tambm tem um ponto central (tityby tya) eduas
extremidades, raroko, a extremidade (roko) ligada cabea(ra),
e rokoti (o cccix), extremidade (roko) ligada s pernas (ti),
apontando para a idia de que cabea e ps/pernas so igualmente
pensados como extremidades que se encontram. O que refora a
proposio de que caminhar do comeo dos rios (associado
cabea) para o seu fim (associado s pernas) voltar ao incio a
partir de um ponto intermedirio. A terminologia para o futuro eo
passado ilumina essa idia, uma vez que o passado e o futuromais
distantes so referidos pelo mesmo termo40:
. antes de ontem kanau kanau
. ontem kanau ou kau
. hoje wiji
. amanh rudi
. depois de amanh kanau ou kau
. depois de depois de amanh kanau kanau
Os mitos, chamados de lahi ijyky (histrias das avs) ou
hkna ijyky (histrias de antigamente) podem ser chamados
tambm de ihetxiu ijyky, narrativas [ijy(k)y] sobre o queaconteceu
no tempo antigo, uma vez que hetxi (ndegas ou nus) pode tero
sentido no s do que est embaixo, mas tambm do que est atrs,
ou seja, o que aconteceu antes41. Afinal, a cabea o que saina
frente quando o beb nasce momento crucial para o pensamento
Java, do qual a sada mtica de baixo para cima um equivalente
simblico , enquanto as ndegas e as pernas saem depois, atrs.
De onde viria a associao da cabea, rosto ou boca com o comeo
4 3
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
ou o primeiro e a frente do corpo; e ps, pernas, ndegas ounus
com o fim ou ltimo e o que est atrs do corpo.
A idia de que o fim e o comeo coincidem, entretanto, s
faz sentido dentro de uma perspectiva relacional: o fim dealgo
sempre o comeo do outro, e esse fim pode ser simbolicamente
equivalente a um comeo, inclusive terminologicamentefalando,
porque o olhar nativo no se dirige a quem est de um lado ou
outro, mas ao que est entre ambos, ou seja, a relaoconstituda.
O foco de interesse no nos opostos isolados (acima/leste e
embaixo/oeste), mas na caminhada (do Sol, da gua, das almas)que
liga os extremos constituindo o meio e transforma-os em uma
totalidade. Por isso que no nvel terrestre intermedirio,
espacialmente falando, que se d a ligao/mediao entre os dois
mundos.
Por ora basta deixar claro que tanto cada um dos nveis
cosmolgicos como Butu Hawa (o mundo) so pensados como
corpos, o que evidenciado mais explicitamente, nos mapas
respectivos, pelos ps de cada um e pela estrada do Sol,cujas
entradas e sadas remetem claramente a bocas e nus; e tambm
pelo fato que a parte terrestre de cada um dos nveiscosmolgicos
(suu) era uma pessoa/corpo antigamente. O fato do comeo dorio
(leste, nvel celeste) ser chamado de o rosto branco dele, e ofim
do rio (oeste, nvel sub-aqutico) de as razes dele, no deveser
entendido como mera analogia metafrica, mas em seu sentidoliteral:
significa que tais extremidades so, de fato, pensadas comosendo
a cabea (ou rosto) e as pernas/ps (ou coxas e nus) do corpodo
mundo (o ele a que se referem as expresses). Embora cada
nvel do mundo seja tido como um corpo em si, por um ngulo, o
4 4
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
conjunto formado pelos trs nveis um corpo maior englobante,
em que o nvel celeste a cabea, o nvel terrestre mediano omeio
do corpo csmico a sua barriga interna (wo) e externa (w) , e
o nvel sub-aqutico a sua parte inferior, ndegas e pernas.
Certos indcios levam a crer que tudo que entra e sai
comparado simbolicamente comida que entra no corpo humano,
atravs da boca, para nutrir e trazer vida, assim como a luz doSol
e as almas que entram no nvel terrestre. O Sol ou os outrosseres
que surgem no mundo dos humanos sociais, a leste, trazemconsigo
a luz solar benfica ou as almas que reencarnam nos vivos. Do
mesmo modo, a comida que sai do corpo, pelo nus,transformada
em algo no mais aproveitvel ou mesmo repudiado, na forma de
fezes, comparada ao Sol que se pe e deixa em seu lugar a
escurido, ou s pessoas que morrem e deixam os parentessofrendo.
A estrada por onde o Sol caminha chamada Txuu ryy, em que
ryy tem tanto o sentido de estrada ou caminho quanto o deboca.
H duas palavras para boca, ryy e ij. Minha boca pode ser
wary ou waij, embora esta ltima possa se referir tambm parte
da boca acima dos lbios, onde nascem os bigodes de um homem.
Uma anlise das expresses mostra que ryy usada mais nosentido
da boca por onde entram os alimentos, enquanto ij , em geral,a
boca por onde eles saem. Em outras palavras, as sadas docorpo,
tais como o nus ou a extremidade externa do canal uretral ou
vaginal, por exemplo, tambm so referidas pela palavra ij,assim
como toda desembocadura de um rio bero ij (a boca do rio),
ou seja, onde um rio acaba e cai em outro. Ij pode ser porta
tambm, mas seu sentido est sempre associado s sadas de algo:
o nus pode ser hetxi ij (a boca das ndegas), a extremidade
externa do canal uretral, n ij (a boca do pnis), aextremidade
4 5
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
externa do canal vaginal, tyy ij (a boca da vagina) e a
extremidade externa do canal auricular, nhti ij (boca do
ouvido). Enquanto ryy associa-se s entradas, boca que recebe
o que desejvel, ij associa-se s sadas do que inaproveitvel.
Mas no deixa de ser revelador que, apesar da assimetria,
as duas extremidades do canal interno do corpo humano so
pensadas igualmente como bocas, como se o fim (nus) e ocomeo
(boca) coincidissem42. O mesmo vale para a entrada e sada do
caminho do Sol (Txuu rotena e Txuu lna), em sua rotacircular,
uma vez que o fim sempre ser uma volta ao comeo.interessante
lembrar que o conceito de volta s origens, ou de que os fins
coincidem com o comeo, expressa-se atravs de uma imagem
corporal surpreendente no mito em que Tanxiw conquista as
pinturas corporais e a escrita: o humano chamado Woros olhao
prprio nus, onde estariam as pinturas corporais e a escrita,fazendo
coincidir a face (incio) com o nus (fim)43.
De um ponto de vista relacional, em que a relao com o
outro que est no centro da ateno, e no o prprio ponto devista,
a mesma passagem que serve de sada (nus) do nvel celeste
serve de entrada (boca) para o sub-aqutico e vice-versa, no
havendo distino simblica significante entre um e outro. Porisso,
tanto as entradas como as sadas podem ser bocas (ryy, ij),por
que o que sai para um ao mesmo tempo o que entra para ooutro,
assim como a morte de algum o nascimento em outro nvel, o
oeste de uns o leste de outros, o fim de um rio o comeo de
outro, a morte da vida dentro do tero o nascimento da vidafora
do corpo materno, o fim da vida no mundo sub-aqutico o comeo
da vida terrena. Talvez essa seja a razo da palavra ryyquerer
4 6
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
dizer tanto boca quanto caminho ou estrada, pois a funo
essencial da boca no apenas receber ou expelir comida, mas
fazer a ligao entre uma extremidade e outra, do mesmo modo
que o que interessa no onde o Sol entra ou sai, mas ocaminho
que ele percorre. Dito de outro modo, o centro no uma ououtra
polaridade (como para Ptesch, 1993, 2000), mas o caminho que
liga as duas entre si, o que no significa uma mera passagemde
uma a outra, como no caso Tupi-Guarani (Viveiros de Castro,1986),
mas um caminho que se constitui fundindo em si os doisextremos.
A mesma lgica ocorre em relao palavra raru (raiz),
cujo sentido pode ser tanto o de fim de algo como o de comeo.Em
iraru (as razes dele), palavra que designa o sentido rioabaixo
ou a extremidade final de um rio (a sua boca), raizassocia-se
a coxas e nus, como j foi dito, com o sentido do que estabaixo
e no fim. Mas em vrias palavras, raru aparece com o sentidode
comeo ou origem, enquanto a raiz que se localiza abaixo da
terra, a origem da planta. Afinal, para os Java, embaixo daterra
est o fim de todos os caminhos, para onde vo os mortos, maso
nvel inferior tambm a origem da vida em sociedade, de ondeos
humanos originais subiram para o nvel terrestre. Assim,warutiraru
a raiz (raru) da extremidade (ti) da minha coxa (waru), aparte
do corpo onde a coxa comea, ligada ao quadril; wadbraru
raiz (raru) da minha mo (wadb), ou seja, o pulso, que o
comeo da mo; ruburaruna, o comeo (raruna) da morte
(rubu). Mais significativa ainda a expresso lahi raru,
literalmente raiz (raru) da face () da av (lahi), em quepode
ter o sentido geral de corpo, como j mencionei, ou seja, a raizdo
corpo da av; ou mais simplesmente, a origem das avs, pois
raru tem sempre o sentido de origem. Essa expresso designa
4 7
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
o conhecimento que os especialistas (os lahi raru rydu), em
geral as mulheres mais velhas, tm sobre as origens daspessoas,
seja em termos de sua ancestralidade, as origens dos vnculosde
parentesco, ou sobre o comeo dos tempos em geral. Ocorreento
que iraru (rio abaixo), assim como ij (boca), pode ter tantoo
sentido de fim do rio (relativo s suas coxas) como o decomeo:
uma das expresses usadas para o leste, associado ao rioacima,
Txuu rarusi (as razes do Sol), pois o fim/oeste/abaixo do riono
nvel terrestre (iraru) pode ser tambm a origem/leste/acimado
rio no nvel sub-aqutico (rarusi), e vice-versa. Assim comoas
bocas, as razes podem ser tanto o fim de algo quanto a suaorigem.
Alguns dados apontam para uma associao respectiva entre
boca/cabea e nus/pernas com a cor branca (ou luz) e o negro(ou
a ausncia de luz). Em primeiro lugar, existe o fato bvio de queo
Sol j estava no Cu (acima) quando Tanxiw o conquistou, em
oposio escurido do nvel sub-aqutico (abaixo); em segundo, o
leste, associado cabea, o biura (cu branco); um terceiroindcio
que quando o Sol est perto de surgir, e a noite comea aclarear
muito de leve, por volta das 4 horas da madrugada, os Javanomeiam
esse horrio de bdraras, traduzido antes como o lugar outempo
est comeando a clarear (Rodrigues,1993:89). Mas a traduo
literal seria algo como a cabea (ra) vermelha (s) do tempoou
lugar (bd), o que seria uma aluso, sugiro, cor vermelha do
cocar (raheto) que o Sol usa na cabea e que clareia aescurido.
A claridade teria a ver, ento, com a cabea que surge nohorizonte.
Por outro lado, o horrio equivalente meia-noite chamado de
ruw tya, o centro ou ncleo na noite, que se ope ao Txuu tya
(meio-dia). A palavra usada para noite, literalmentefalando,
significa barriga (w) do nus (ru), ou seja, o meio (abarriga
4 8
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
o meio do corpo) do que est abaixo (o nus), pois ameia-noite,
para quem est na terra ou no Cu, quando o Sol est no meio
espacial da caminhada pelo nvel inferior sub-aqutico. Ruwtya
seria, ento, o centro exato (tya) do meio (w) do Fundo dasguas
(ru). Assim a escurido mxima tem seu sentido ligado ao nus,ao
que est embaixo. Quando meio dia no Cu, e o Sol est com oseu
cocar na cabea, no meio da caminhada celeste (Txuu tya),meia
noite embaixo (ruw tya), no nvel sub-aqutico (e vice-versa),porque
o nvel intermedirio impede que a luz celeste ilumine o nvelinferior.
Aquilo que est abaixo teria menos luz, como o mundo escurodos
mortos que vivem do wabd, o cemitrio invisvel abaixo daterra.
Tudo leva a crer que a oposio cabea versus ps/pernas
tem o mesmo significado, em termos corporais, da oposio bocae
nus, podendo agreg-las, junto com claridade e escurido, aogrande
eixo csmico corporal que ope espacial e temporalmente comeo,
cabea ou boca, comida, luz ou branco, leste, nvel superior (Biu)e
rio acima, de um lado, a fim, ps/pernas ou nus/ndegas,fezes,
escurido ou negro, oeste, nveis inferiores (Berahatxi ewabd)
e rio abaixo, de outro. Ao primeiro grupo juntam-se o estatismo,a
paz, os parentes, os tios paralelos (referidos pelo termoura,
branco), os primognitos e os heris transformadores, enquanto
ao segundo juntam-se as transformaes, os conflitos, os afins,os
cunhados (referidos pelo termo lyby, negro) e os caulas44.Todos
manifestaes da grande e essencial oposio: homens e mulheres
(ou identidade e alteridade), que transportada para asrelaes
entre os povos que formaram a sociedade e a cultura Java.Desse
modo, Tlra e seu povo, de um lado, e os Wr, de outro,associam-
se aos extremos respectivos de masculinidade e feminilidade, oupaz
4 9
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
e conflito, estatismo e transformao, os Java atuais constituindoo
produto da relao entre ambos, equivalente ao meiocosmolgico.
Nesse grande mundo/corpo, em que a estrada do Sol e dos
habitantes csmicos tambm o canal que liga a boca ao nus
dentro de cada corpo e do corpo total, existe sempre umponto
intermedirio entre as oposies mencionadas, que pode ser a
barriga, o meio dia ou a meia noite, o nvel terrestre ou o meiodo
rio, todos equivalentes simblicos. Assim como o estmago oponto
intermedirio do corpo humano em que a comida no mais a
delcia que entrou pela boca que recebe nem os restosrepugnantes
que saram pela boca que expele, o meio csmico o nvelterrestre
o lcus da socialidade, o grande centro estomacal cosmolgico
que faz a mediao tensa entre um extremo desejado e umrepudiado,
ambos igualmente anti-sociais. O fim do caminho do Sol (noCu)
tambm um comeo (no Fundo das guas) porque o caminho do
nvel celeste s concebido em relao ao caminho do nvel sub-
aqutico, e vice-versa, assim como o meio-dia celeste s existeem
relao meia-noite do Fundo das guas. Os fins s coincidem
com os comeos porque o ponto de vista adotado o da relao
com o outro, ou seja, nem o eu nem o outro, mas o que est no
centro, entre45. O meio mediao entre opostos, em outras
palavras, a prpria relao a relao em si , um terceiro
produto que liga e contm os dois extremos opostosinternamente,
mas que ao mesmo tempo no nenhum dos dois. Ao se considerar
o triadismo como uma forma de dualismo assimtrico,considerando
o meio como um dos opostos, perde-se da perspectiva justamentea
relao entre os opostos, a caminhada que liga os extremos e
possibilita a transformao46.
5 0
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
Concluso
no centro, no sentido de uma situao espao-temporal
entre, enquanto mediao, que se exerce a socialidade referida
pelo conceito de tya, que pode ser interpretado, de modomais
esttico, como centro, ncleo, meio, ambivalncia ou, de
modo mais dialtico, como mediao, relao entre opostos,
paradoxo ou sntese. Os Java so o Povo do Meio justamente
porque a socialidade no est nem dentro da sociedade,enquanto
sistema fechado, nem fora, enquanto estrutura que serelaciona
com a exterioridade, mas entre, contendo em si os opostos.Em
outras palavras, pretendo preencher o conceito de tya comuma
significao processual e histrica, em que a estrutura muitomais
o produto paradoxal de uma mediao contnua entre diferentes
que se contradizem do que um centro esttico.
Distancio-me, assim, de uma abordagem estruturalista, como
a de Ptesch (1993, 2000), para quem o triadismo cosmolgico
Karaj no visto como um meio que funde opostos uma relao
criativa , mas como um centro oposto a dois extremos, ouseja,
uma forma travestida de dualismo, dentro do espritolvi-straussiano
(1975, 1982). Mesmo que a autora tenha tido a inteno de dotara
representao Karaj de um dinamismo que estaria ausente,segundo
os antroplogos estruturalistas, na representao concntrica
Bororo, dinamismo no o mesmo que histria. O meio a que me
refiro no um mero centro exteriorizado, ou uma aberturarelativa
de uma estrutura esttica, mas uma relao histrica econtraditria,
que pode ser entre homens e mulheres, genros e sogros, ouentre
os Aruak e os Macro-J, o lcus da socialidade.
5 1
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
Os Java esto no meio porque tambm vem a socialidade
como estando entre um extremo repudiado (dos corpos abertose
que sangram, da afinidade, alteridade e transformaes) e um
desejado (dos corpos fechados, onde no existem outros, afins,a
mudana e a morte), realizando a mediao social entre estados
no-sociais e opostos (Rodrigues,1993)47. A ambivalncia Java
no est fora do ser humano social, mas lhe inerente, como
mediao entre opostos assimtricos. Assim como a cultura, todo
ser social uma sntese paradoxal das relaes entre aspolaridades
feminina e masculina, mudana e estatismo, contendo em si os
extremos. O estar entre Java no deixar de conter os dois
extremos, como no caso do vazio ontolgico transitrio dapessoa
Tupi-Guarani, mas conter em si a relao entre os opostos.Esse
resultado no , tambm, o mesmo que a pessoa dual Apinay (Da
Matta,1976) e Krah (Melatti,1976), em que os opostoscoexistem
mas mantm-se separados, na forma de substncia e nome (ou
natureza e cultura). A ambivalncia ou o estar entre da pessoae
da cultura Java, enquanto produto de uma verdadeira relao
dialtica, estariam mais prximos, ento, do axioma Bororo:
everything exists by reason of an internal dialectic. In everypossible
abstract mode, it is itself and its own antithesis(Crocker,1985:134),
de modo que todo ser humano seria uma sntese vital soul
(op.cit.:288) dos opostos Bope/substncia e Aroe/nome.
Tanto a cultura como a pessoa Java so vistas como
misturas puras, o equivalente do meio cosmolgico: snteses de
fixao e transformao, identidade e alteridade, masculino e
feminino, interior e exterior, embora haja sempre uma hierarquiade
valor da pureza sobre a mistura, de um extremo cosmolgico(rio
acima) sobre o outro (rio abaixo). Enquanto a pessoa Jconstituda
5 2
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
de uma identidade contrastiva no jogo especular de relaes de
oposio, em que se o que o outro no ; e a pessoa Tupi-Guarani
dissolve a prpria noo de identidade, sendo apenas quando se
torna o outro; talvez pudesse ser dito que a pessoaJava/Karaj,
uma variao Bororo, no se espelha simplesmente no outro nemse
torna o outro ao longo do tempo, mas o contm dentro de siprpria
desde sempre, paradoxalmente.
Notas
1Mestre em Antropologia pela Universidade de Braslia. DoutorandaemAntropologia pela Universidade de Chicago (EUA).
2O presente artigo uma verso resumida de parte de um captulo deminha tesede Doutorado, em preparao. Realizei seis meses depesquisa de campo entreos Java em 1990, para o Mestrado, e maisdoze meses de pesquisa em 1997/1998, para o Doutorado. Tanto noMestrado quanto no Doutorado contei como apoio financeiro einstitucional do CNPq, de quem recebi bolsas deestudointegrais.
3Ver Da Matta (1976, 1979), Melatti (1976, 1979), Maybury-Lewis(1979,1984) e Crocker (1979, 1985), por exemplo.
4Para quem as sociedades amaznicas, com seu amorfismo interno,negariam aafinidade ou alteridade internamente, no plano das relaessociolgicas com osafins reais, projetando-as para o exterior (osafins potenciais no reais), ouseja, a aliana seria feita num planosimblico, com os outros externos (mortos,estrangeiros, inimigosetc). O que seria diferente dos sistemas dos centro-brasileirosconservadores, com um centro interno em que os outros ou osbrancosesto excludos e as diferenas do exterior so incorporadas emarcadasinternamente. Haveria ento uma oposio entre sociedadesabertas, sem interior,amorfas ou minimalistas, que projetam asdiferenas e o seu centro para fora (osTupi-Guarani e amaznicos); esociedades fechadas e sem exterior, queincorporam e marcaminternamente a diferena (os J-Bororo).
5Ver Ptesch (2000) sobre a terminologia Karaj e Souza (1995)sobre o paradoxoiroqus-havaiano dos grupos alto-xinguanos.
6Ver os Comaroff (1992), para quem toda cultura intrinsecamentedualista eaberta s influncias externas, de modo que ordem edesordem, sistematizao e
5 3
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
imprevisibilidade, estatismo e mudana convivem de forma fluida eambgua. Osmesmos autores, assim como Cohn (1994), Sahlins (1996) eTurner (1988),entre outros, defendem a idia geral de que em todacultura, mesmo antes docolonialismo ou da penetrao capitalista,existiu e existe em articulao com oambiente social ao redor, sejamas outras comunidades locais, as economiasregionais ou as forasglobais. Deste modo, no se pode falar em limites fixosoupr-ordenados entre o que interno e o que externo a cada sociedadeou cultura.
7 Na tese em preparao h uma discusso mais aprofundada sobre omito enquantoum modo de conscincia histrico (ver a coletnea deHill, 1988, sobre o assuntoe, em especial, os artigos deTurner).
8Parte da discusso apresentada aqui origina-se da anlise dosmitos coletadosentre os Java. Na tese em preparao, mostro como osepisdios mticos so,apesar da aparncia fragmentada, uma nica e longahistria sobre os tempos dacriao, cujo eixo central apresentado logono incio do trabalho citado.
9A letra K entre parnteses indica a verso feminina da palavra,aqui e em outroscasos. A verso masculina seria Kuriawau.
10Tlra apresentado como o primeiro il, cargo de chefiatradicional transmitidoatravs de geraes, associado principalmentetarefa de resoluo dos conflitosinternos. Existem outros tipos dechefia (poltica e ritual), mas nada que secompare, em termos deprestgio, s funes exercidas antigamente pelos il.
11Ver Turner (1992) e Lea (1993).
12Ver Ireland (2001) sobre o pacifismo Waura (um dos gruposAruak xinguanos)para quem o auto-controle e a paz so valoressupremos, em oposio aodescontrole dos guerreiros, tema centralJava. O que diferente do ethospredatrio de que fala Viveiros deCastro (1993, 2002) para os amerndios; edo comportamento belicistaJ, exemplificado pelos Kayap e Xavante, cujareferncia encontrada naliteratura histrica, como em Chaim (1974); ouantropolgica, como emTurner (1992) e Bamberger (1979) sobre os Kayap, eMaybury-Lewis(1984) e Lopes da Silva (1992) sobre os Xavante, que falam deumethos guerreiro desses grupos.
13Famlias Java costumavam mudar-se no vero (seca) paratemporadas depesca nos lagos e rios da Ilha do Bananal e arredores,acampando nas praias quesurgem com a seca, o que diminuiu bastanteaps o contato. Nas ltimas dcadas,as pescarias de vero tm sidofeitas principalmente por grupos de homens como objetivo de venderseu produto a compradores externos. Embora houvesse umpadro dealternncia entre aldeias fixas e acampamentos de vero,relativamenteparecido com o padro Kayap, as aldeias fixas no eramabandonadas, o que muito diferente do semi-nomadismo dos Kayap, queabandonavam suasaldeias a cada 2 ou 5 anos (Turner, 1992), ou dosXavante (Maybury-Lewis,1984).
5 4
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
14Ver Da Matta (1979) e Melatti (1979), por exemplo, sobre osApinay e Krah,embora haja terminologias J de troca simtrica, comoos Xavante (Maybury-Lewis, 1984) e Bororo (Crocker, 1985,1979).
15Ver Viveiros de Castro (1987) sobre a recluso Iawalapti, porexemplo.
16Em 1990, havia uma adolescente reclusa por um temporelativamente longo emCanoan. Os Java dizem que a recluso femininaps-menstruao poderiadurar at 6 meses antigamente, no passando dealguns dias atualmente (verRodrigues, 1993). Os il eram criadosreclusos, antes do casamento, a maiorparte do tempo.
17Dos Wou (Tapirap), representantes de uma influncia Tupi, osJava dizem terherdado um tipo de milho, o uso do algodo, do urucume do jenipapo (aspinturas corporais), o estojo peniano, a tanga deentrecasca e palavras como omai (milho). No h referncia a umentrelaamento cultural maior com osTapirap, da famlia Tupi-Guarani,com quem teria havido alguns casamentosno passado, embora sejamconsiderados um povo superior entre os outrospovos estrangeiros. Notrabalho em preparao, h uma argumentao maiorsobre a influncia Tupi,a qual, creio, no tem o mesmo peso das influncias J-Bororo e Aruak.A terminologia de parentesco Karaj uma variao daquelaque se usa noalto-Xingu (ver Souza, 1995). O xamanismo Karaj, por sua vez,quetambm atribudo por Ptesch aos Tupi, atravs dos vizinhosTapirap,baseia-se na ambigidade do xam, ao mesmo tempo curador emortal, life-givere life-taker. Como mostra Viveiros de Castro(1986), essa uma caractersticaexclusiva dos Tapirap, no podendo sergeneralizada aos Tupi em geral. O quenos leva a questionar se noseriam os Tapirap que teriam sofrido influnciasdos Karaj, e no ocontrrio. Por fim, no que se refere ao triadismo cosmolgico(ummeio, o nvel terrestre, entre duas extremidades, Fundo das guas e oCu),que para Ptesch seria uma verticalizao de influncia Tupi,argumento notrabalho em andamento que h similaridades comcosmologias Aruak, por umlado. Por outro,ele estaria muito maisprximo do paradoxo Bororo, em que apessoa uma sntese instvel deprincpios antagnicos (Crocker, 1985), omesmo valendo para a pessoae a cultura Java, ambas pensadas como essemeio que contm ou faz amediao entre duas extremidades opostas.
18Deslocamentos espaciais so associados a transformaes sociais,assuntoaprofundado na tese em andamento. Os homens so associadospermannciae as mulheres s transformaes, o mesmo contedo simblico dopar Aroe/Bope Bororo (Crocker, 1985). As mulheres so tambm tidascomo a causa dosconflitos nesse mundo social.
19Ver o trabalho de Schiel (2002) sobre o desprestgio dacategoria mestioentre os Karaj da cidade de Aruan.
20Atitude que tem seu paralelo no ato de criar nomes/Aroe Bororo(Crocker,1985),atravs do qual se pretende dar forma ou fixar o caosinominado.
5 5
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
21Alguns dos dados a seguir j haviam sido apresentados em minhadissertao deMestrado, pela Universidade de Braslia (Rodrigues,1993), sendo aqui inseridosem uma caracterizao mais completa e emalguns pontos revisada docosmos Java.
22Ver Rodrigues (1993) sobre o cosmo Java e Donahue (1982),Toral (1992),Lima Filho (1994) e Ptesch (2000) sobre o cosmosKaraj, estruturalmentesemelhante.
23Ra (cabea) tem aqui o sentido geral de corpo tambm. Em outrasexpresses,so as palavra (rosto/face) ou tyky (pele) que tomam olugar do corpo inteiro.
24Ver Toral (1992:152) para a informao de que o Berahatxi, entreos Karaj,encontra-se abaixo dos leitos dos rios ou lagoas, o quefoi confirmado pelosJava.
25Wtyky, invlucro, pele ou corpo (tyky) da barriga (w) tambm temo sentidogeral de corpo, assim como wratyky, invlucro, pele oucorpo (tyky) dacabea (ra) da barriga (w).
26Hawa um territrio definido ao redor de uma aldeia e butu tudo,otodo.
27A numerao em questo no se refere ordem dos mapas/desenhosnestetrabalho, mas numerao anterior dos trabalhos.
28Txuu rotena, o lugar onde entra (rotena) o sol (txuu); txuulna, o lugaronde sai (lna) o sol (txuu). Ver Toral (1992) paradefinio semelhante dasmesmas expresses entre os Karaj.
29Expresso cujo sentido local de sada dos humanos.
30Os aruans so os humanos mgicos que vivem no Fundo das guas,mascarados,e que so trazidos pelos xams para participar dos rituaisterrestres, quando soincorporados pelos homens.
31 Ver os mesmos conceitos espaciais Karaj e sua significaosimblica emDonahue (1982), Toral (1992), Lima Filho (1994), Ptesch(2000).
32Lima Filho (1994) fala da mesma inverso entre dia e noite paraos Karaj.
33Ver as etnografias de Donahue (1982), Toral (1992), Lima Filho(1994) e Ptesch(2000).
34Aqueles que morrem tambm encontram a escurido, em um primeiromomento.O mundo dos woros e dos (k)uni mais escuro (ver LimaFilho,1994 eRodrigues,1993) e os (k)uni s andam pelas aldeiasperseguindo os parentes noite.
5 6
PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES
35Carneiro da Cunha diz que os Krah costumam localizar a nicaaldeia dosmekar (princpio pessoal de algum aps a morte) nokhoikwa-yiht,literalmente o fim do cu, isto , o ocidente, onde oSol se pe (1987:74). Anica aldeia dos mortos Krah, em sua oposioaos vivos, parece concentrar aspolaridades que os Java localizam emdois extremos opostos: ao mesmotempo o estar entre si desejvel e ainvoluo indesejvel.
36Esta uma importante diferenciao, com base etnogrfica, domodelo propostopor Ptesch (1993, 2000), baseado na suposta distinoKaraj entre um eixovertical (nvel aqutico, terrestre e celeste),que no passaria de uma oposioassimtrica entre os nveis aqutico eceleste (igualmente fechados, estticos eonde as pessoas soimortais) ao nvel terrestre (aberto e mortal); e umhorizontal(leste/oeste, espao masculino/espao feminino), o queseria uma oposiodiametral. Para a autora, a verticalidade tridica(dualismo assimtrico)representaria uma abertura da estruturadiametral horizontal fechada.
37 Ptesch (2000) mostra como o hitxe(k), um artefato de madeiratrabalhadoartisticamente, colocado nas extremidades do tmulo domorto Karaj (um nacabea e outro nos ps), pensado como umarepresentao do corpo humanotripartido (cabea, meio e pernas). Toral(1992) sugere que o hitx(k) Karaj uma representao do morto.
38Embora no tenha obtido essa informao, imagino que o fim darota de um rioterrestre o incio, em sentido oposto, do rio ou riosque correm no Fundo dasguas, assim como o fim do caminho solar aqui(o nosso oeste) o incio docaminho do Sol embaixo, o lestesub-aqutico. Tal hiptese auxiliada pelarepresentao visual do ciclodas guas, feita por um Java em forma de crculo,ou seja, igual rotado Sol; o auge ou meio da enchente beora tya (equivalenteao meiodia solar, Txuu tya); e o auge da seca, wyra tya (equivalentemeia-noite,ruw tya). Em Lima Filho, (1991:56), o auge da secawyrawtya, o meio (tya)da barriga (w) da seca (wyra). Entre o augeda enchente e o auge da seca existeo bhetxi (ndegas da gua),passagens entre as duas estaes em que as guasesto estagnadas,equivalentes s passagens do Sol (Txuu lna e Txuu rotena).
39O corpo humano concebido como o produto de um acmulo gradualde energiavital, desde a infncia at o incio da vida adulta, o pontotya (meio) do cicloenergtico humano. Quando homem e mulher tm oprimeiro filho, acredita-seque eles comeam a retornar ao incio,perdendo energia vital. O incio e o fim davida, do ponto de vistaenergtico, so concebidos como simbolicamente similares,o querepresentado nas pinturas corporais associadas a cada classe deidade(Rodrigues, 1993).
40De modo que caminhar para a frente/futuro seria equivalente aretornar paratrs/passado. Toral (1992), em sua sugesto de que odeslocamento histricodos Karaj rio acima/sul seria uma continuao daascenso mtica, sugere que irpara o alto/frente seria futuro e irpara baixo/trs seria passado. O que eu
5 7
O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA
proponho, j formulado antes (Rodrigues,1993:426), que ir para oalto/frente/futuro em algum momento torna-se ir parabaixo/atrs/passado. Ptesch(1987:79) j havia sugerido que,cosmologica e ontologicamente falando, asubida quase equivaledescida, a posterioridade ancestralidade, o futuroao passado.
41Toral (1992:147) fala que o nvel sub-aqutico chamado pelosKaraj deberahatxiwebro, por trs das profundezas das guas, de modoque abaixoequivaleria a atrs. Como bro (br entre os Java) so ascostas de umapessoa, o sentido literal dessa expresso, traduzidapor mim, seria as costasda barriga das ndegas do rio, ou seja, oque est atrs e abaixo do rio.
42Significativamente, a palavra waijn, minhas fezes, pode serutilizada, emtom jocoso, no sentido de minha comida (warsna).
43Na ponta sul da Ilha do Bananal est o bero ij ib(k), a boca dorio acima,e na ponta norte o bero ij iraru, a boca do rio abaixo.Apesar do RioAraguaia correr no sentido sul/norte, as duasextremidades so bocas do rio.
44Ver Ptesch (2000) para o contraste entre ura e lyby naterminologia deparentesco e afinidade Karaj.
45O que no seria o mesmo que o ponto de vista do inimigo, ooutro, adotadopelos Arawet, por exemplo (Viveiros de Castro, 1986,2002).
46 Refiro-me ao modelo Karaj de Ptesch (1987, 1993, 2000), paraquem ocentro uma das polaridades do dualismo que se disfara detriadismo no eixovertical: de um lado estaria o centro (nvelterrestre, aberto, de grande mobilidadee mortal), e de outro osoutros nveis anlogos (celeste e sub-aqutico, ambosfechados,estticos, de movimento restrito e imortais), o que resultarianaoposio assimtrica a que a autora se refere. A autora consideroucomo maissemelhantes entre si do que diferentes os extremossub-aqutico e celeste,porque no obteve dados, entre os Karaj, sobreo extremo dos ensangentados,tambm situado no nvel sub-aqutico, masradicalmente oposto ao extremodos habitantes celestes. Enquanto noCu os humanos tm os corpos fechadose purificados, sem exteriorizarsubstncias, os habi
(PDF) O povo do meio: uma paradoxal mistura pura€ atual, adaptação de vários povos a uma base antiga de língua e cultura Aruak (representadas pelos Yawalapiti, Mehinaku, Waura e Kustenau), - DOKUMEN.TIPS (2023)
Top Articles
The 18 Best Action Movies of 2021 (So Far)
Android 11 | Android
THE BALL'S IN HIS COURT Terps star, NBA stalwart, trial lawyer and now agent to today's pro athletes: Is there any challenge Len Elmore can't meet?
Best alternative advent calendars 2022: From popcorn to pork crackling
Top 10 Festivals In Northwest Indiana - Updated 2022
10 Things to do when Facebook Marketplace not Working
99 Cute Ways To Say Goodnight Over Text To Your Crush
Latest Posts
Earn Your Doctor of Physical Therapy (DPT) at Clarkson – Health Sciences
Physical Therapy DPT Program | Clarkson University | New York
Cliffs of Moher Hiking Tour from Doolin | Ollie's Tours
Hiking Doolin to The Cliffs of Moher (Doolin Cliff Walk) - Your Irish Adventure
The 7 Best Cliffs of Moher Tours From Dublin [2023 Reviews] | World Guides To Travel
Article information
Author: Jonah Leffler
Last Updated: 04/11/2023
Views: 5675
Rating: 4.4 / 5 (45 voted)
Reviews: 92% of readers found this page helpful
Author information
Name: Jonah Leffler
Birthday: 1997-10-27
Address: 8987 Kieth Ports, Luettgenland, CT 54657-9808
Phone: +2611128251586
Job: Mining Supervisor
Hobby: Worldbuilding, Electronics, Amateur radio, Skiing, Cycling, Jogging, Taxidermy
Introduction: My name is Jonah Leffler, I am a determined, faithful, outstanding, inexpensive, cheerful, determined, smiling person who loves writing and wants to share my knowledge and understanding with you.