(PDF) O povo do meio: uma paradoxal mistura pura€ atual, adaptação de vários povos a uma base antiga de língua e cultura Aruak (representadas pelos Yawalapiti, Mehinaku, Waura e Kustenau), - DOKUMEN.TIPS (2023)

  • Revista de Estudos e Pesquisas, FUNAI, Braslia, v.1, n.1,p.11-63, jul. 2004

    Resumo: Apesar de pertencerem ao tronco lingstico Macro-J, humdebate antropolgico sobre a verdadeira identidade cultural dosKarajem geral, dos quais fazem parte os Java, uma vez que estes noseenquadram facilmente dentro das caractersticas conhecidas dosseusvizinhos J-Bororo do Brasil central. A partir de uma anlise doque aprpria mitologia Java diz sobre essa questo, aliada ao estudodacosmologia e organizao social nativas, proponho que os Javaconcebem-se como o produto original e nico de relaes criativasentre duas grandesmatrizes culturais, por mim associadas aosJ-Bororo e aos Aruak centrais,embora reconheam tambm influnciasmenores dos Tupi e, agora, dosno-ndios. Tanto a cultura como apessoa so concebidas como produtode relaes transformadoras entrediferentes e, ao mesmo tempo, datentativa permanente erelativamente bem-sucedida dos atores sociaismasculinos deneutraliz-las, ou seja, como paradoxais misturas puras.

    Palavras-chave: Java. Cosmologia. Mitologia. Triadismo.

    O povo do meio: uma paradoxal mistura pura

    Patrcia de Mendona Rodrigues1

    Quem so os Java?2

    Os Java, autodenominados Iny (gente) ou Itya mahdu

    (o Povo do Meio), so habitantes imemoriais do vale do Rio

    Araguaia, em especial da regio da Ilha do Bananal (TO) e

    arredores (a leste), sendo conhecidos como um sub-grupo dos

    Karaj em geral (o que inclui os Karaj propriamente ditos, os

    Xambio e os Java), pertencente ao tronco lingstico Macro-J.

    ~

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    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    Apesar de importantes diferenciaes culturais e dialetais entreos

    trs sub-grupos, h uma estrutura geral (organizao social e

    cosmologia) em comum. Do ponto de vista etnogrfico, soinegveis

    e mais perceptveis ao observador semelhanas dos Karaj emgeral

    com caractersticas culturais J-Bororo, talvez pela associaoa

    priori que se faz entre lngua e cultura. O triadismocosmolgico,

    interpretado por Ptesch (2000) como uma forma aberta do

    dualismo J-Bororo, o cerimonialismo intenso, associado casados

    homens, a uxorilocalidade, as relaes assimtricas entre genrose

    sogros (Turner, 1979), a endogamia de aldeia, as classes deidade,

    uma srie de oposies marcadas (entre as metades cerimoniais,

    entre espao masculino e feminino, rio acima e rio abaixo, tiomaterno

    e pai, casa natal e casa dos afins etc), o cosmos inscrito noespao,

    o faccionalismo interno, a importncia dos mortos comoidentidade

    contrastiva dos vivos (Carneiro da Cunha, 1978), a poucavalidade

    de princpios de descendncia, tudo isso encontrado entre osJava

    e associa-se aos J-Bororo3.

    Por outro lado, h fatores importantes que os distanciam dos

    J em geral. Para Toral (1992:280), as instituies dos Karajcomo

    um todo parecem com as de muitos grupos J e com nenhum em

    especial, fazendo parte do complexo cultural J. Em um dilogo

    com o modelo proposto por Viveiros de Castro (1986, 1993,2002)4,

    Ptesch (1987, 1993, 2000) sugere que os Karaj representariam

    uma estrutura intermediria no continuum J-Bororo/Tupi, entrea

    estrutura concntrica, fechada, dualista (natureza xcultura),

    esttica, de centro nico e horizontal dos Bororo (Macro-J),de

    um lado; e a estrutura aberta, tridica (natureza, cultura,

    sobrenatureza), evolutiva, pluricntrica e vertical (busca da

    transcendncia divina, o tornar-se outro) dos Tupi, de outro.O

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    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    dualismo tridico e assimtrico Karaj (um centro oposto a duas

    polaridades), com seu centro dilatado (meio que une edivide),

    representaria uma abertura da estrutura (exteriorizao docentro)

    concntrica J-Bororo, no sentido de uma verticalizao (ocosmos

    concebido com trs nveis, aqutico, terrestre e celeste), umequilbrio

    dinmico entre foras centrpetas (J-Bororo) e centrfugas(Tupi).

    A estrutura Karaj, enquanto passagem entre um e outro,possuiria

    uma verticalidade que os J-Bororo no tm, mas que no alcana

    a mesma dimenso da verticalidade transcendente Tupi, uma vez

    que a nfase escatolgica Karaj seria muito mais um voltar asi

    do que um tornar-se outro Tupi, ou seja, uma transcendncia

    limitada. A autora atribui influncias Tupi, portanto, naimportncia

    do xamanismo para os Karaj e nas suas concepes cosmolgicas,

    dada a convivncia prxima com os Tapirap; e afirma que a

    terminologia do tipo iroqus-havaino, um tipo mais amaznico,comum

    aos Tapirap, Tenetehara e alto-xinguanos, a principalcaracterstica

    destoante dos Karaj em relao aos povos do Brasil central5.Em

    seu trabalho sobre o ritual de iniciao masculina Karaj, oHetohok

    (Casa Grande), Lima Filho (1994:174) sugere cautela com a

    busca de solues hbridas, como a proposta por Ptesch, pelo

    fato da sociedade Karaj estar longe de ser consideradaconhecida.

    Entretanto, o autor aponta inmeras semelhanas temticas entre

    o Hetohok Karaj e o ritual Kwarup alto-xinguano, por um lado,e

    o rito de iniciao Krah chamado Tepyarkwa, por outro.

    De minha parte, proponho que a melhor soluo para a

    definio de uma identidade cultural Java, que aqui no tem um

    sentido de um todo coerente e fechado6, dar ouvidos aocontedo

    da mitologia nativa, enquanto um modo de conscincia social

    histrico dos Java a respeito do processo de construo de sua

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    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    prpria sociedade, ao mesmo tempo em que se procede anlise

    da organizao social e da cosmologia7. Baseada no que osprprios

    Java dizem atravs do discurso mitolgico8, que no se separade

    uma conscincia histrica profunda, gostaria de sugerir ahiptese

    de que a cultura e a sociedade Java so uma espcie de fuso

    criativa de influncias Macro-J (Bororo em especial), Aruak(ou

    Arawak),Tupi (em menor grau) e, agora, tambm dos brancos

    (principalmente a tecnologia). Ao longo da narrativa mtica vosendo

    apresentados os vrios povos que contriburam, alguns em maior

    dose, outros em menor, para a formao dos Java, seja emtermos

    de substncia fsica [os povos Ijwh, Kuratanikh, Wr,

    Imotxi, Wou (Tapirap), Karaj, Werehina, Kuriawa(k)u]9, seja

    em termos de bens culturais e materiais [os povosBisaru(k)r,

    Ijwh, Kuratanikh, Wr, Karalu, Wou, Torohoni ou

    Kanan, Karaj, Halylyra, Hryri Hetxi Tb, Mri,

    Kuriawa(k)u, Koriminikh]. Dentre essa legio decontribuintes,

    que no se esgota nesta lista, os trs grandes doadores desubstncia

    e cultura so o heri mtico Tanxiw (do povo Ijwh, apresentado

    como o ancestral tambm dos brancos), o lder Tlra e os outros

    do povo Kuratanikh, e o povo Wr. Entre eles, contudo, no h

    um mais especial que os outros, o verdadeiro ancestral.atravs

    da relao entre esses trs, basicamente, com contribuies em

    maior ou menor grau de outros, uns considerados ixju

    (estrangeiros) inferiores, como os prprios Karaj, outros comoixju

    de respeito, como os Wou (Tapirap), que vai se consolidandoa

    cultura e a sociedade Java.

    Note-se que o mito no fala em termos de uma ou mais

    essncias originais sobre as quais influncias externas foram

    sobrepostas e digeridas nenhum dos ancestrais mencionados so

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    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    referidos como os Java originais , mas apenas de relaes

    entre fontes diversas que foram se fundindo ao longo do tempoe

    construindo uma nova forma, original e nica. Ou de como acultura

    Java pode ser vista como um conjunto de vrias partes que s

    podem ser compreendidas se vistas na sua relao fusional entresi

    e com o todo maior. A fuso relacional mencionada tratada de

    forma sinttica no episdio sobre como o povo de Tlra funde-se

    fsica e culturalmente com os Wr e os povos vizinhos que vm

    prestar tributos ao grande il10. Tal acontecimentoextraordinrio

    ocorre na aldeia Marani Hawa, o local onde Tlra surge doFundo

    das guas, situada no interior da Ilha do Bananal eabandonada

    desde a metade do sculo passado, mas ainda considerada umstio

    sagrado e de importncia simblica especial. A aldeia MaraniHawa

    apresentada no mito como o epicentro onde ocorrem as relaes

    transformadoras, como uma espcie de caldeiro cultural em que

    relaes entre diferentes ingredientes produzem uma criaonica.

    Os Java no se vem como descendentes de um nico grupo ou

    cultura ancestral imutvel, mas como o produto malevel, criativoe

    original das vrias relaes entre povos diferentes queocorreram

    ao longo do tempo.

    A mitologia identifica, contudo, duas grandes matrizes

    culturais, entre as vrias influncias menores de outros povos,que

    teriam contribudo de forma mais substancial para aconstituio

    dos Java atuais. O povo chamado Wr, que tambm teria surgido

    do Fundo das guas em um local a leste da Ilha do Bananal,era

    dotado de caractersticas que so facilmente associadas a umamatriz

    cultural J-Bororo, relacionada aos povos do Brasil central. Osmitos

    atribuem aos Wr algumas caractersticas J, tais como obelicismo

    (acompanhado de captura de cativos e crianas) em sua fria

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    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    conquistadora [o modo como conquistam os bens culturais e

    materiais de outros povos lembra a predao cultural oufagocitose

    referida por Carneiro da Cunha (1993) e a conquista Kayapdos

    nekretch (prerrogativas ou bens cerimoniais) e crianas deoutros

    povos]11; os constantes deslocamentos espaciais, o intenso

    cerimonialismo, a casa dos homens, a diviso entre espao

    masculino e feminino da aldeia, o faccionalismo interno, oritual de

    iniciao masculina e a Dana dos Aruans (baseada na relao

    entre pai e tio materno e que se constitui uma variao do temados

    nomes J, em especial Bororo, como tento argumentar na teseem

    preparao). Tambm segundo o mito, a lngua Wr (depois

    misturada com outras influncias) a base principal da lnguaJava

    atual, situada pelos lingistas dentro do tronco lingsticoMacro-J.

    J os traos culturais do povo de Tlra, enumerados pela

    mitologia, correspondem, em termos gerais, aos mesmos traos

    encontrados no alto Xingu. Em seu trabalho etno-arqueolgicosobre

    o alto Xingu, Heckenberger (2001:30) prope que a cultura

    xinguana atual, adaptao de vrios povos a uma base antiga de

    lngua e cultura Aruak (representadas pelos Yawalapiti,Mehinaku,

    Waura e Kustenau), faria parte de uma protocultura ou um

    substrato Aruak maior e muito antigo, abrangendo vastasreas,

    em que os Pareci e os Aruak xinguanos seriam consideradoscomo

    os Aruak centrais (ver Hill & Santos - Granero, 2002 e

    Heckenberger, 2002). Estes ltimos formariam uma provncia

    cultural que compreende a vasta rea entre a regio leste doalto

    Xingu e as terras baixas da Bolvia, chamada de PeriferiaMeridional

    da Amaznia, situada entre duas grandes provncias

    macroculturais (op.cit.:28), os Tupi amaznicos e os J doBrasil

    central. As caractersticas centrais e milenares dos Aruakcentrais

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    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    ou dos grupos influenciados por eles (como todos osalto-xinguanos),

    com variaes significativas em cada grupo, seriam: grandesaldeias

    anulares relativamente permanentes e interligadas; economiasde

    agricultura intensiva (roas fixas), baseadas na mandioca enos

    recursos aquticos; integrao scio-poltica regional (comrcio,

    casamento e cerimonialismo intertribal); ideologias basicamenteno-

    ofensivas (no-predatrias); hierarquia social interna eascenso

    hereditria chefia. Em suma, sedentarismo, regionalismo,pacifismo

    e hierarquia. Embora sem uma anlise maior, o autor sugere(op.cit:

    59) que os Bororo e os Karaj (cujo territrio seria o limitemximo

    da expanso Aruak a leste) teriam sido influenciados por esse

    padro, devendo, entretanto, ser tratados separadamente, porterem

    uma histria especfica diferente dos grupos da periferiameridional.

    Creio no haver dvidas que os Java (e seus vizinhos Karaj)

    partilham de caractersticas essenciais do padro Aruakcentral.

    Embora as aldeias no sejam circulares, os Java possuem uma

    ideologia assumidamente pacifista (reao e guerra s quando

    provocados, alm da identificao da coletividade masculina como

    paraso celeste pacfico), o que seria um ethos receptivo ao outroe

    no predatrio12; praticam o sedentarismo (as principaisaldeias

    referidas nos mitos so praticamente as mesmas que existem at

    hoje)13, a agricultura intensiva de roas fixas (em que amandioca

    tem importncia central) e usam recursos aquticos (os Java e

    Karaj so, antes de tudo, pescadores e senhores das guas);

    marcam a diferena entre famlias nobres e comuns ou pobres

    (hierarquia), principalmente atravs das famlias que herdam a

    condio de il, chefia hereditria. Por fim, e no menos

    significativo, os Java e Karaj partilham com todos os alto-

    xinguanos no uma nomenclatura de parentesco com traos Crow-

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    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    Omaha, como os J do Norte14, mas uma variao consanguinizante

    iroqus-havaiana do tipo dravidiano, comum na Amaznia (ver

    Viveiros de Castro, 1993, 2002).

    A anlise da mitologia informa que as contribuies de Tlra

    e seu povo so, de forma inequvoca, associveis ao complexo

    cultural alto-xinguano, a comear pela vocao pacifista dogrande

    il, que ascendeu a este plano visvel com a tarefaextremamente

    honrada, para os Java, de conciliao e pacificao dosconflitos

    reinantes at ento. A hierarquia manifesta-se claramente nasua

    condio nobre e superior de il, respeitada e admirada por

    todos os povos, inclusive os guerreiros Wr, e quetransmitida

    hereditariamente at hoje. O sedentarismo tambm explcito:

    Tlra e seus descendentes viveram e morreram no mesmo lugar

    onde surgiram, a aldeia Marani Hawa, ao contrrio dos

    deslocamentos constantes (ou semi-nomadismo) dos Wr. O

    regionalismo, que talvez no seja mais praticado atualmentecomo

    era antes, revela-se, atravs do mito, na forma cooperativa epacfica

    com que Tlra recebe os outros povos em Marani Hawa (onde

    trocas culturais e matrimoniais, similares ao padroalto-xinguano,

    so feitas) e abriga os fugitivos estrangeiros. O mito tambmrefere-

    se prtica de recluso dos adolescentes (iwt) entre o povo do

    Marani Hawa, caracterstica marcante do alto-Xingu15 e queainda

    praticada entre os Java, embora cada vez mais rara16. E oque

    igualmente revelador: o mito fala claramente que foi com o povode

    Tlra que os Wr e os Java atuais aprenderam a terminologia

    de parentesco e tratamento (do tipo iroqus-havaiano, como noalto-

    Xingu), ou seja, o modo correto de se dirigir s pessoas17.

    Como mostra uma leitura cuidadosa do mito, houve uma

    sobreposio hierrquica, ao final das contas, do ethos pacficode

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    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    Tlra ao ethos guerreiro dos Wr. Embora os Java orgulhem-

    se em dizer que descendem dos dois, eles reconhecem

    explicitamente, nos comentrios feitos s narrativas, em tomde

    crtica, que os Wr eram povos dominadores e insensveis. No

    mito, os Wr submeteram-se disposio conciliatria de Tlra,

    que abrigou os fugitivos Karaj e afastou seus perseguidores,os

    guerreiros Wr, apenas com sua superioridade moral e nobre.Os

    Wr foram embora, tendo deixado contribuies culturaismarcantes,

    entre elas a Dana dos Aruans, mas Tlra e seus descendentes

    continuaram em Marani Hawa desde ento. A anlise dacosmologia

    e organizao social mostra que, de fato, os valores de contenodo

    conflito pblico (auto-controle) e sedentarismo (estatismo),associados

    neutralizao da alteridade e da transformao, sobrepem-se a

    qualquer tica guerreira ou predatria que por acaso tenhafeito

    parte, no passado, da formao da cultura Java. A forma

    relativamente definida, porm permevel, que a cultura e asociedade

    Java atual tomou vista como o produto de uma relao criativa

    entre diferentes. Colocando isso em palavras mais precisas, eudiria

    que a forma atual, em sua essncia, seria vista como o produtode

    uma mediao entre opostos: o estatismo e o pacifismo Aruak

    associam-se ao auto-controle masculino mais valorizado, oumelhor,

    imagem que os homens tm de si nos mitos como maiscontrolados

    que as mulheres; e o belicismo e o deslocamento espacial J

    associam-se ao suposto maior descontrole feminino, uma

    caracterstica altamente repudiada (ver Rodrigues, 1993)18.

    O fato do ponto de vista masculino associar-se s influncias

    Aruak significa uma posio hierrquica superior dos valoresAruak

    em relao aos valores J, pelo menos no sentido limitado da

    oposio entre paz e guerra, estatismo e movimento. Opermanente

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    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    esforo masculino em controlar as mulheres (ou o maior valordas

    influncias Aruak em relao aos J) corresponde, em um outro

    nvel, dialtica constante entre ordem e desordem, entre atentativa

    masculina de fixar e repetir o que foi criado, por um lado, ea

    existncia inevitvel de transformaes e conflitos associados

    feminilidade. A cultura, enquanto totalidade mutvel que setenta

    fixar, vista como permanente embate entre foras e valores

    contraditrios, entre o pacifismo Aruak e o belicismo J, ou entreo

    princpio conservador masculino e o transformador feminino.Os

    Java, diz o mito, no so agora nem Aruak nem Macro-J, mas o

    produto da relao histrica entre ambos (e entre outros, masde

    influncia menor), criadora de uma nova totalidade, que nica,

    mas contm em si, transformados, os componentes do passado.

    A revelao, para mim, de que a cultura nativa vista

    implicitamente como o produto de relaes e fuses

    transformadoras, e no como uma estrutura fixa que se repetedesde

    sempre, talvez no tivesse tanto impacto no fosse averdadeira

    obsesso, observada desde o comeo, que os Java tm em evitar

    e negar as misturas e a alteridade, demonizando os outros(mulheres,

    afins ou outros povos) e as misturas em geral, seja no planodas

    prticas matrimoniais19, seja no plano cosmolgico e ritual, emque

    o objetivo maior da Dana dos Aruans conectar os humanos

    terrestres e sociais, ainda que apenas simbolicamente, com omundo

    sem outros, onde tudo se repete, nada criado. De um lado, omito

    mostra basicamente o processo de construo da sociedade ecultura

    atual atravs de vrias relaes de trocas inter-tnicas, emvrios

    nveis, como casamentos, trocas culturais e guerras, ou seja,atravs

    de vrias misturas. So vrios os exemplos de casamentos inter-

    tnicos que contriburam para a sociedade Java tomar a formaatual.

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    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    Por outro lado, a anlise da organizao social mostra, ao

    contrrio, que a prtica atual a endogamia de aldeia e deparentela,

    que os Java condenam firmemente os casamentos inter-tnicos e

    praticam a troca restrita (casamento preferencial com primos

    cruzados bilaterais distantes), dentro de um ideal de cognao

    (Ptesch, 2000:206) em que todos do grupo so pensados como

    parentes; e que a identificao de uma criana com os Aruans

    (ancestrais mgicos imortais e mascarados) uma tentativa de

    suprimir da conscincia o fato bsico que ela o produto de uma

    relao fsica e social entre diferentes, um homem e umamulher.

    Alm disso, os Java possuem uma terminologia de parentesco

    consanguinizante, referindo-se aos afins com tecnonmicos(ver

    Ptesch, 2000). Uma das piores formas de xingamentorelacionar

    em pblico os antepassados estrangeiros (ixju) de algum,embora

    no exista um nico Java que no descenda de um povo ixju. Os

    casamentos inter-tnicos so estigmatizados, mas a constituioda

    sociedade Java, narrada na mitologia, produto de casamentos

    com estrangeiros, ou seja, h um reconhecimento implcito de quea

    condio de estrangeiro est, em algum nvel, dentro de todos.

    Tudo isso insere a cosmologia e as prticas Java dentro de

    uma temtica amerndia maior da desconfiana em relao s

    diferenas, tidas como perigosas, mas indispensveis, como jfoi

    apontado por Kaplan (1984). No se deve, entretanto, confundiro

    desejo de afastar a alteridade, manifesto nas prticasmencionadas,

    com um modelo nativo de sociedade minimalista, monognica,

    fechada ou amorfa internamente. Assim como os J, os Java

    possuem elaborados rituais e marcaes internas, seja na formade

    metades cerimoniais, classes de idade ou casa dos homensversus

    espao feminino etc. Tambm no estamos inserindo os Javadentro

  • 2 2

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    da oposio entre sociedades fechadas ou sem exterior, que

    incorporam a diferena internamente (centro-brasileiros), e

    sociedades sem interior, que projetam a diferena ou afinidadepara

    fora (amaznicos). O desejo obsessivo de purificao revela, ao

    contrrio, a conscincia histrica de que toda a realidadesocial

    produto de relaes intrnsecas com a alteridade, no havendouma

    separao entre um dentro, onde se salientam as diferenas ou

    se negam as trocas e as relaes, e um fora, em que aexterioridade

    desconsiderada ou para onde as diferenas so projetadas e

    valorizadas. H o reconhecimento de que a alteridade condio

    sine qua non de qualquer relao social, seja no plano dasrelaes

    domsticas (entre homens e mulheres, parentes e afins),locais

    (entre metades opostas) ou supra-locais (entre os Java e os

    estrangeiros), todas traduzidas simbolicamente como relaesentre

    um princpio masculino e um feminino.

    Elaborando de um outro modo, veremos que os Java no

    oscilam entre um interior inexistente e um ou vrios centrosno

    exterior, de um lado, e um centro interno e um exteriorinexistente,

    de outro, ou seja, os Java no so uma sociedade amorfa

    internamente, nem uma sociedade sem exterior. Na verdade, o

    centro justamente a ponte entre o interior e o exterior, se quese

    pode dizer isso, dissolvendo essa oposio entre dentro e fora.O

    modelo nativo reconhece que tanto dentro quanto fora adiferena

    uma realidade inescapvel: as diferenciaes internas so

    marcadas com a mesma nfase dos J, ao mesmo tempo em que a

    relao com a exterioridade intrnseca sociedade, como para os

    Tupi-Guarani; mas tanto dentro quanto fora tenta-seigualmente

    neutralizar essas trocas, relaes, diferenas. O conceito Javade

  • 2 3

    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    socialidade reside justamente nessa mediao entre umarealidade

    de diferenas, seja interna ou externa, e um desejo deelimin-las,

    no existindo uma oposio entre um outro interno e um externoou

    a escolha entre um (J) e outro (Tupi-Guarani).

    A tentativa de criar a fico de que a tradio Java

    pura, ou pelo menos de purificar a sua condio intrnseca derelaes

    entre outros, passou a ser o objetivo maior da coletividademasculina

    desde os tempos da criao. No que se refere s relaesinternas,

    essa tentativa toma forma atravs da Dana dos Aruans e da

    negao da afinidade gerada pelo matrimnio; quanto s relaes

    externas, ocorre principalmente atravs da repetio e da

    cristalizao artificial das criaes inovadoras, produto defuses

    entre povos diferentes, no discurso mtico, utilizando-se dosclssicos

    ditos que encerram os episdios mitolgicos: por isso at hoje

    assim, nada mudou. Ao final das narrativas, as criaes so

    reduzidas a repeties do mesmo, congeladas propositadamente

    em uma forma fixa20. O que um esforo imenso de neutralizar a

    alteridade, vista como indissocivel das mudanas, uma vez que

    toda criao concebida como produto de uma relao

    transformadora entre diferentes, potencialmente conflitantes,ou

    seja, de uma mistura. E toda mistura, ou melhor, todo produtode

    uma relao, tido como poludo, contaminado com a alteridade.

    Assim, a cultura Java seria concebida, ao mesmo tempo, como

    uma totalidade constituda de transformaes intrnsecas,produto

    de relaes fusionais entre diferentes (internos e externos), eda

    tentativa permanente e relativamente bem-sucedida dos atores

    sociais masculinos de purific-la, fixando-a, repetindo-a, ouseja,

    como uma paradoxal mistura pura.

  • 2 4

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    O Territrio da totalidade (Butu Hawa)21

    Para poder responder pergunta inicial sobre quem so os

    Java, levando em considerao as respostas elaboradas pelaprpria

    conscincia social nativa, necessrio incluir a relao dos Java

    com as outras dimenses no visveis. Afinal, assim como eles

    percebem a si prprios dentro do contexto de relaes com ospovos

    da dimenso terrestre e visvel, os outros povos que habitam a

    vastido do cosmos tambm fazem parte dessa identidadeconstruda

    sempre na relao com a alteridade. A totalidade csmica ,antes

    de tudo, humana, na medida em que todos os seres do cosmos,

    sociais ou no, so em algum grau humanizados, sejam osanimais,

    as rvores, os ancestrais mgicos, os monstros invisveiscanibais

    ou os astros, concebidos como corpos humanos. Apresento aqui

    apenas uma descrio espacial do mundo em sua totalidade, dos

    lugares onde habitam os personagens csmicos, argumentandoque

    os Java no concebem dois eixos espaciais opostos (um verticale

    um horizontal), como sugere Ptesch (1993, 2000) a respeitodos

    Karaj, mas um nico eixo corporal uma vez que o mundo

    visto como um grande corpo , em que a cabea e os ps domundo,

    respectivamente, so equivalentes simblicos do leste, do rioacima

    e do nvel superior, de um lado, e do oeste, do rio abaixo e donvel

    inferior, no outro extremo oposto.

    O espao aberto em que vivem os humanos terrestres, o

    Ahana bira, definido sempre em relao aos espaos fechados

    (o nvel sub-aqutico e o celeste) que j existiam antes doshumanos

    do mundo sub-aqutico resolverem conhecer este plano em que

    vivemos. A diviso ternria bsica do cosmos entre o Berahatxi,

    um nvel sub-aqutico (abaixo dos leitos dos rios) e fechado, oBiu

  • 2 5

    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    Wtyky, o nvel celeste, igualmente fechado, e o Ahana bira, o

    nvel terrestre, aberto e amplo, j foi tratada em outrostrabalhos22.

    Aqui sero refinados alguns conceitos e ser mostrado que cada

    parte e o todo so pensados como corpos humanos, o que no foi

    explorado anteriormente. bira [lado (bira) do rosto ()] a

    face lateral de uma pessoa, entre as orelhas e a ma dorosto,

    enquanto ahana tem o sentido de fora, de modo que os humanos

    terrestres em geral so Ahana bira Mahdu, ao p da letra, o

    Povo com a Face de Fora. A humanidade tambm Itya mahdu,

    o Povo do Meio (embora essa expresso tenha o sentido de um

    etnnimo especfico dos Karaj e Java), porque, entre outrascoisas,

    o Ahana bira situa-se no meio exato do cosmos, entre o nvel

    celeste, acima, e o nvel sub-aqutico, abaixo.

    Para se localizar espacialmente o nvel sub-aqutico, usa-se

    a expresso wahetxiraworen, o que est dentro do que est

    embaixo de ns, em que hetxi (ndegas) associa-se ao que est

    embaixo e rawo refere-se a dentro da cabea/corpo, com

    sentido figurado de dentro da terra23. Ou seja, o espaoterrestre

    fechado que est abaixo do Ahana bira. Este espao chama-se

    Berahatxi, as ndegas (hetxi) do rio (bero), em sentidoliteral,

    ou o que est abaixo (do leito) do rio24. J o nvel celeste,Biu

    Wtyky (ou Biu Wratyky), tem o sentido literal de invlucro ou

    pele (tyky) da barriga (w) da chuva (biu), em que wtyky temo

    sentido geral de corpo, ou seja, o espao fechado que contm a

    chuva dentro de si pensado como o corpo da chuva, tambm

    chamado simplesmente de Biu (que a chuva ou todo espao

    superior: o teto, a tampa, o avio, o alto de um prdio ou ocu

    esto no biu)25. Para localizar o Biu, diz-se que estwaratyaren,

    no centro (tya) de nossas (waren) cabeas (ra), no sentido de

  • 2 6

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    que est acima dos seres humanos, mas ocupando o centro doespao

    superior. Assim como as ndegas associam-se ao que estembaixo,

    a cabea associa-se ao que est em cima. A posio exata ecentral

    do Biu no nvel superior, em relao s cabeas/pessoas, Biu tya

    ou Bd tya.

    Os trs nveis integram Butu Hawa, o mundo, literalmente

    o territrio da totalidade26, cujos limites so definidos e paraalm

    dos quais no h mais nada. Seus limites so bd knana ou

    bd wsi (o fim do mundo). Os limites externos do Biu e do

    Berahatxi tambm so bd knana, porque eles coincidem com

    o fim do mundo total, como pode ser visto no mapa ao lado(n.5)27,

    um dos vrios mapas e desenhos feitos por um xam Java. Esse

    territrio total concebido como um corpo humano, dotado deuma

    passagem interna, por onde o Sol (Txuu) caminha. O Sol, comletra

    maiscula, o nome de uma pessoa que usa o raheto, cocar, de

    cor vermelha, como o fogo (que no desenho aparece nas duas

    extremidades do mundo), que o heri Tanxiw conquistou do

    Rararesa (o humano chamado Urubu-Rei), em episdio mtico

    famoso, para os humanos. Nas extremidades do mundolocalizam-

    se uma entrada e uma sada, por onde o Sol entra (Txuurotena)

    e sai (Txuu lna)28, anlogas boca e ao nus. So conceitos

    espaciais, referidos pela partcula na (lugar): o lugar de sada eo

    lugar de entrada do Sol. A estrada do Sol, que passa somentepelo

    Biu e pelo Berahatxi, como veremos (o caminho em vermelho no

    mapa), Txuu ryy, sendo que ryy tem tanto o sentido de boca

    quanto caminho, porque a boca pensada como o incio docaminho

    da comida dentro do corpo, o caminho cujo fim o nus. Os trs

    nveis csmicos possuem dois ps/pernas (ti) cada um, de forma

    que os ps do nvel inferior so tambm os ps do mundo todo. Em

  • 2 7

    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    MAPA 5: Butu Hawa, o territrio da totalidade

  • 2 8

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    todos os trs nveis existe a terra (suu) sobre a qual seushabitantes

    vivem. Suu era uma pessoa antigamente, que foi transformadapor

    Tanxiw na terra em que todos pisam, e por isso os trs nveis

    possuem ps/pernas atualmente.

    As passagens por onde o Sol entra ou sai so do mesmo tipo

    que as passagens que os humanos sub-aquticos usaram para

    ascender ao nvel terrestre no incio dos tempos (In lna)29.No

    so tneis, apenas passagens entre os dois mundos, as mesmaspor

    onde os xams viajam para atingir as dimenses invisveis e por

    onde passam os aruans30, os outros seres que participam dosrituais

    Java, e as almas humanas (dos que morrem e reencarnam) que

    transitam pelos diversos nveis. Todos esses viajantescsmicos,

    assim como o Sol, entram pelo Txuu rotena e saem no outromundo

    pelo Txuu lna, ou seja, quem vai do nvel terrestre (ou doceleste)

    para o nvel sub-aqutico, por exemplo, entra na passagem pelo

    oeste terrestre (Txuu rotena) e sai no Fundo das guas pelo

    leste deles (Txuu lna deles). E vice-versa. Enquantoterritrios

    definidos, todos os trs so Hawa (Biu Hawa, Berahatxi Hawa e

    Ahana bira Hawa). Como j foi dito, Biu Hawa o Biu wtyky

    do Ahana bira, ou seja, o nvel celeste o corpo da chuva que

    cai no nvel terrestre intermedirio. A chuva que cai na terra eas

    nuvens celestes (bd bina ou bd wtyky hd) saem pelos ps

    do Biu (Biu wtykyti). De modo anlogo, o Ahana bira o

    Berahatxi Biu wtyky, ou seja, o nvel terrestre o cu dos que

    moram no nvel sub-aqutico. O nvel terrestre uma espcie de

    teto do Berahatxi, tambm sendo pensado como um corpo (wtyky)

    ou invlucro da chuva (e das nuvens) que cai no mundosub-aqutico,

    e que tambm sai pelos ps do Ahana bira. Entre o nvel celeste

    e o terrestre h um espao vazio, representado no mapa. Asuperfcie

  • 2 9

    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    do nvel sub-aqutico, por onde passa o caminho do Sol, estabaixo

    da gua (b) dos rios do nvel terrestre, embora no desenho se

    tenha outra impresso, dada a dificuldade que o xam teve em

    expressar graficamente uma realidade, no mnimo,tridimensional.

    Tudo que aparece em azul abaixo do Ahana bira Hawa a terra

    (suu) do nvel sub-aqutico. Os seus habitantes, porm, moram

    apenas na superfcie (ou margem superior) desse ambiente,

    representada no mapa n 3, que se refere apenas ao BerahatxiHawa.

    O lugar onde o Sol se pe (Txuu rotena), no nvel terrestre,

    conhecido tambm como bd br, as costas do tempo, lugar

    ou mundo, o que tem relao com a palavra wabd (meu mundo,

    tempo ou lugar), usada para designar os cemitrios. Em outro

    trabalho (Rodrigues,1993), mostro que os cemitrios Javasituam-

    se sempre na direo oeste das aldeias, de modo que bd br

    seria as costas (no sentido de atrs) do cemitrio (bd), o que

    coincide sempre com o lugar onde o Sol se pe (Txuu rotena).O

    lugar onde o Sol surge (Txuu lna), por sua vez, chama-setambm

    biura (cu ou chuva branca), um outro conceito para o leste,o

    que tem relao com o fato do Cu ser a origem do Sol e daclaridade

    no mito em que Tanxiw conquista o Sol do Urubu-Rei celeste.

    Biura (leste) e bd br (oeste) so, junto com as noes de rio

    acima [ib(k)] e rio abaixo (iraru), as mais importantesreferncias

    espaciais Java, cujos significados mais amplos seroretomados30.

    A trilha do Sol situa-se na superfcie do nvel sub-aqutico e

    do nvel celeste. Quando o Sol caminha pelo cu (a trilha azuldo

    mapa n4, representando Biu Hawa), ele ilumina o nvel celeste eo

    nvel terrestre ao mesmo tempo, pois h apenas um espao vazio

    entre ambos. O Sol que surge a leste, do ponto de vista doshumanos

  • 3 0

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    terrestres, o mesmo Sol que est comeando a sua caminhada no

    Biu (Cu), como pode ser visto no mapa n5 (que tem o ponto de

    vista dos humanos terrestres, por isso o Txuu lna queaparece

    no mapa o leste terrestre e celeste), no sentido lna pararotena.

    Quando o Sol faz essa caminhada celeste, o nvel terrestre e oCu

    ficam iluminados, mas o nvel sub-aqutico, imediatamenteabaixo

    do nvel terrestre, permanece escuro, pois este ltimo impede quea

    luz chegue at l. Enquanto dia na terra ou no Cu, porexemplo,

    o ponto intermedirio exato do caminho do Sol corresponde aomeio-

    dia (Txuu tya, o meio do Sol); o mesmo momento, no Fundo das

    guas, o meio ou centro da noite (ruw tya), o seja, a meia-

    noite do nvel abaixo das guas, e vice-versa. A estrada celestedo

    Sol (Txuu ryy), durante a noite, corresponde Via Lctea queos

    humanos terrestres vem. Ao entrar a oeste, do ponto de vista

    terrestre, o Sol est surgindo a leste, do ponto de vista dos

    moradores do Berahatxi. Ou seja, ao se pr aqui, o Sol nasce l,o

    Txuu rotena do Cu e da terra so o Txuu lna do Fundo das

    guas e vice-versa32.

    A utilizao da palavra Txuu rotena (lugar de entrada do

    Sol) para o oeste e Txuu lna (lugar de sada do Sol) para

    leste revela que o caminho do Sol s pensado pelos humanos

    terrestres (ou celestes) em sua relao com os humanos das

    profundezas aquticas e vice-versa: pois o leste, se o ponto devista

    terrestre fosse auto-centrado, no onde o Sol sai, mas onde aluz

    do Sol entra no Ahana bira, assim como o oeste no deveriaser

    onde o Sol entra, mas onde o Sol sai do nvel terrestre. Stem

    sentido chamar o oeste de entrada do Sol a partir de um pontode

    vista relacional, em que os humanos do nvel terrestre e celestes

    se pensam atravs da relao com os humanos do mundo inferior e

  • 3 1

    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    MAPA 3: Berahatxi Hawa, o territrio do Fundo das guas

  • 3 2

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    MAPA 4: Biu Hawa, o territrio do Cu

  • 3 3

    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    vice-versa. Os Java so o Povo do Meio porque o ponto de

    vista deles no est de um lado ou outro, mas na relao entreos

    extremos, o equivalente do meio.

    Como j foi apresentado em maior profundidade antes

    (Rodrigues, 1993), o oeste associado pela escatologia nativaaos

    lugares escuros e invisveis que existem abaixo do cemitrio

    (wabd), onde vivem os que morreram enfeitiados ou derramando

    sangue (assassinados), em sofrimento e estado de carncia

    permanente (sem abrigo ou alimentao adequada, sem os

    parentes), onde todos so estranhos, com desconforto fsico e

    psicolgico total. Em um primeiro momento, durante o perododo

    luto, aproximadamente, todos que morrem tornam-se (k)uni, aalma

    que se transforma em um estranho e desconhece seus antigos

    parentes, perseguindo e aterrorizando os vivos noite. Este o

    primeiro e mais repudiado estgio da vida aps a morte,associado

    poluio, perda de energia vital, ao desespero, desagregao

    familiar, ao movimento excessivo, escurido, fome de alimento

    e afeto, ao tempo acelerado, inconscincia [o (k)uni no sabe

    que morreu] etc. Depois a pessoa pode seguir para diferentes

    destinos, dependendo de como foi a sua morte e dos acordosque

    seus parentes fizeram com os xams, os condutores das almasdos

    mortos. Seu destino depende tambm do conselho secreto dos

    xams e woros (palavra polissmica, mas que aqui tem o sentido

    de mortos que vivem no wabd) que se rene quando algum

    morre. Os que morreram perdendo sangue (de corpos abertos,

    perdendo energia vital, a pior morte de todas) so enterrados coma

    face virada para o lado onde o Sol se pe e permanecem como

    (k)uni eternamente na Terra dos Ensangentados (Hure mahdu

    Hawa), o pior dos infernos, localizada no wabd invisvel,abaixo

  • 3 4

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    da terra, a oeste. Os que morreram enfeitiados (o que incluitodo

    mundo, com exceo dos assassinados) podem virar woros e viver

    em no wabd tambm, mas separados da Terra dos

    Ensangentados pelo Rio dos Mortos (Rubu Bero), em um lugar

    no to ruim como o dos primeiros, embora tambm associado ao

    sofrimento. Dependendo das negociaes secretas entre o grupo

    de xams e entre os xams e os parentes dos mortos, a pessoa

    tambm pode ir para o Berahatxi, o Fundo das guas, localizado

    abaixo do nvel terrestre, caracterstica comum dos trsdestinos

    mencionados.

    Os parentes dos xams (e no s os xams, como entre os

    Karaj)33 podem deixar a condio de (k)uni e ascender para o

    nvel celeste, associado ao leste, para onde o rosto dos mortosem

    geral deve ser virado ao serem enterrados. Os mortos que vo

    para o Fundo das guas ou para o nvel celeste transformam-se

    em tykytyby (literalmente pele velha), um dos conceitos Java

    para as diferentes condies de vida aps a morte. No cu vivem

    os heris criadores originais, para onde todos os vivos desejamir

    depois de mortos. o lugar da abundncia, da juventude ebeleza

    eternas, do estatismo, dos corpos fechados (em que no hperdas

    energticas), da reproduo mgica, onde o Biu mahdu (Povo do

    Cu) vive em plenitude total, sem dvidas a pagar ou qualquertipo

    de alteridade (afins, esposas, estrangeiros). Em vriosmomentos

    importantes da vida, as pessoas devem ficar com ocorpo/rosto

    virados para o leste, de forma a se conectar com as emanaes

    positivas desse plo espacial e temporal desejado (pois ocontrrio

    brbuna, faz mal).

    No que se refere ao destino escatolgico, a Terra dos

    Ensangentados e o Cu so os extremos mximos, no meio dos

  • 3 5

    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    quais situa-se o nvel terrestre (onde se faz a mediao socialentre

    um mundo s de outros e um mundo sem outros, igualmente no-

    sociais). Em termos de localizao espacial, o destino desejado(Biu)

    associa-se ao leste, enquanto o repudiado (wabd) estclaramente

    associado ao oeste. Entre os dois extremos h uma gradaoentre

    o perfeito e o terrvel, em que o nvel sub-aqutico uma espcie

    de paraso imperfeito, pois l tudo (comida, ambiente, oshabitantes

    etc) menos perfeito que no Cu; e o wabd propriamente dito

    um inferno no to ruim quanto a Terra dos Ensangentados. Em

    meu trabalho anterior (Rodrigues, 1993), propus que, em termosde

    contedo, o nvel terrestre estaria em uma posio intermediriaentre

    o nvel celeste e o nvel sub-aqutico, de um lado, e os doislocais do

    wabd, de outro. Tambm reconhecia que, em termos de localizao

    espacial, essa proposta era problemtica, uma vez que Cu (emcima)

    e Fundo das guas (embaixo) opem-se claramente, estando onvel

    terrestre entre ambos. Agora, luz de novos dados e de uma

    compreenso mais profunda, percebo que a localizao espacial

    reflete, de fato, o que os Java pensam quanto ao contedosimblico

    dos nveis cosmolgicos.

    A oposio a que esto se referindo no entre um paraso

    perfeito (Biu) e um imperfeito (Berahatxi), de um lado, e osdestinos

    temidos de outro, como eu pensava, mas entre um parasoperfeito

    (Biu), simplesmente e todos os outros menos perfeitos outerrveis

    (Berahatxi e o wabd). O nvel sub-aqutico (Berahatxi) um

    mundo sem mortes e sem outros, para onde alguns dosprimeiros

    humanos que saram debaixo resolveram retornar aps encontrara

    morte aqui, mas no to pleno quando o celeste. Afinal, no h

    nenhum desejo ou curiosidade pelo diferente onde tudoperfeito:

    foram os humanos aquticos (e no os celestes) que decidiram

  • 3 6

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    ascender ao nvel terrestre porque aqui havia comidas maisgostosas,

    o espao era amplo e, principalmente, havia a luz do Sol queeles

    no conheciam. A subida mtica primordial revela algum tipo de

    insatisfao com a vida no Fundo das guas, um desejo deconhecer

    o outro ou o novo. E desejos, como se sabe, s existem onde h

    carncias. Enquanto um plano de carncias, ainda que mnimas,

    quando comparadas ao wabd, o nvel sub-aqutico ope-se

    abundncia e plenitude do nvel celeste, situando-sesimbolicamente

    junto com os destinos escatolgicos repudiados, embora hajagrande

    diferenas gradativas entre eles.

    Quanto localizao espacial, os novos dados tambm

    mostram que o nvel sub-aqutico e o wabd situam-se no extremo

    oposto ao nvel celeste. Agora sabe-se que a passagem que os

    xams, aruans ou mortos usam para chegar ao Fundo das guas

    ou ao nvel subterrneo invisvel a mesma passagem que o Sol

    utiliza para entrar (Txuu rotena) no mundo de baixo. O oeste

    terrestre (que coincide com o oeste celeste) a entrada paraos

    mundos que esto abaixo, de modo que ir para oeste ir parabaixo

    tambm (ver mapa n5). O Sol e todos que morrem,transformando-

    se em (k)uni, deslocam-se em um primeiro momento para ooeste

    e para baixo (onde est o wabd). A escurido, em grausdiversos,

    associada morte ou aos mundos inferiores dos mortos quesofrem,

    em oposio claridade da vida eterna no nvel celeste34.Afinal,

    foi para conhecer a claridade do Sol, tambm, que o povo donvel

    sub-aqutico resolveu ascender ao nvel terrestre, como conta omito35.

    Segue-se ento que tudo que est abaixo do nvel terrestre

    visvel (como o wabd ou o nvel sub-aqutico), embora haja

    gradaes de distncia (assim como de contedo) entre eles, est,

  • 3 7

    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    de algum modo, a oeste, ou seja, para alm da passagem onde oSol

    entra. Pois sempre que o Sol entra, do ponto de vista terrestre,ele

    j est, ao mesmo tempo, descendo para os mundos inferiores,no

    havendo, portanto, distino espacial entre o oeste e o abaixo.Mas

    importante enfatizar que o que est abaixo, o nvel inferior,tem

    diferentes contedos simblicos, diversamente ao que estacima,

    que se define como um nico Cu paradisaco. O nvel inferior

    tanto o paraso imperfeito de onde os humanos surgiram (onvel

    sub-aqutico) quanto o destino terrvel de todos, em umprimeiro

    momento, aps a morte (wabd), contendo uma duplicidade de

    significados no existente no nvel celeste. Por outro lado, doponto

    de vista terrestre, quando o Sol surge do Fundo das guas (de

    baixo e a leste), est indo em direo ao Cu (para cima), demodo

    que ir para o leste equivale a ir para cima (o Cu). Assim, ocaminho

    a leste possibilita a ascenso celeste do Sol ou de qualqueroutro

    viajante csmico. Deste modo dissolve-se a contradio aparente

    entre um eixo vertical (abaixo/em cima) e um horizontal(leste/oeste).

    Na verdade no existem dois eixos espaciais opostos, mas ums,

    constitudo de um centro terrestre visvel (Ahana bira) entre

    dois opostos assimtricos (Fundo das guas/oeste eCu/leste)36.

    Resta ainda contemplar a importante orientao espacial

    baseada na oposio entre ib(k) (rio acima) e iraru (rioabaixo),

    extremos associados s metades cerimoniais Saura (macaco) e

    Hiretu (gavio), respectivamente. Foi somente aps a anlise

    etimolgica dessas palavras que sua significao simblicaalcanou

    uma complexidade bem maior, at ento desconsiderada. Irefere-

    se ao que dele, e raru tem o sentido metafrico de raiz(iraru,

    razes dele), que deriva de uma analogia com as coxas de uma

    pessoa, pois ru pode ser as coxas (waru, minhas coxas) e

  • 3 8

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    tambm o nus. As razes de uma planta so o que esto para

    baixo dela, assim como as coxas e o nus de uma pessoa (se a

    cabea for tomada como referncia do que est em cima). Wararu

    (minhas ndegas/coxas) pode se referir s ndegas e coxas de

    uma pessoa sentada, como se ela estivesse enraizada no cho.Ira

    cabea dele, mas pode ter o sentido geral de corpo dele, uma

    vez que tanto (face) quanto ra (cabea), como j foi dito,muitas

    vezes substituem a noo de corpo nas expresses. Assim, iraru

    algo como as coxas do corpo dele, no sentido que so a partede

    baixo do corpo de algum, assim como as razes de uma plantaso

    o que est abaixo dela. As coxas so o que esto abaixo porque

    o corpo humano, assim como o cosmos, pensado como uma

    totalidade tripartida: tanto a w (a parte externa da barriga)quanto

    o wo (o que est dentro da barriga) so considerados como Intya

    ou um tya, o meio ou centro (tya) do corpo (um) dos seres

    humanos (In). A w (barriga) o centro corporal, associado

    simbolicamente ao nvel terrestre, situado entre dois opostos

    assimtricos, a cabea (nvel celeste, acima) e as pernas/ps(nvel

    sub-aqutico, abaixo)37.

    A palavra ib(k), traduzida geralmente como rio acima,

    tambm reveladora. , como j foi dito, face ou rosto. B

    uma palavra mais antiga, e agora pouco usada, que significacor

    branca (referida mais comumente pelo termo ura), e que seaplica

    aos tubrculos ou frutas verdes, que no amadureceram ainda,ou

    seja, que ainda esto no comeo de suas vidas. uma palavra

    aplicada tambm s crianas recm-nascidas: a expresso

    toho(k)u ibm roirri, por exemplo, refere-se ao beb (tohoku)

    ainda muito novo (ibm) que est deitado (roirri), e que porisso

    se deve segurar com cuidado. Ib(k) seria, mais ou menos, o

  • 3 9

    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    rosto ainda no maduro ou branco dele, ou seja, refere-se aum

    rosto (ou corpo) em seu estgio inicial de vida. A cor brancasurge

    associada ao que est em um estgio inicial, no maduro, ou o

    que no foi transformado ainda, ou seja, o comeo de algo.Como

    j vimos antes, as cabeas (e rostos) situam-se simbolicamente

    junto com os comeos, em oposio s pernas e ps, situadas

    nos fins, de modo que h uma dupla associao da palavra ib(k)

    com o comeo de algo, mais especificamente, o comeo de umrio.

    Por outro lado, sabe-se tambm que as cabeas/rostos

    simbolizam o que est em cima, em oposio s pernas e ps,

    smbolo do que est em baixo, no sendo difcil concluir que oque

    est em cima tambm o que est no comeo, e que o que est em

    baixo tambm o que est no fim de algo. Tal associao

    corroborada pelo fato que a cabea (ra), onde se situa rostoou

    face () e que est em cima, tambm tem seu significado ligado

    ao comeo de algo: por exemplo, as msicas do tipo irank, que

    eram do povo de Tlra, cantadas at alguns anos atrs, eram

    msicas lentas que anunciavam o comeo das danas, comeo este

    referido pela palavra ra. H ento a possibilidade de que ocomeo

    de um rio, ao ser pensado como algo que est acima, estejaassociado

    ao nvel celeste. Essa hiptese confirmada na medida em que o

    leste, ligado simbolicamente ao Cu (Biu), que est acima,referido

    pela palavra biura (cu branco), e o sentido rio acima,referido

    por uma palavra que contm a partcula ib, contm a noo de

    branco tambm. Ento, pode-se dizer que, assim como o que

    est rio abaixo tem a ver com o que est em baixo e no fim (as

    pernas), aquilo que est rio acima tem a ver com o que estacima

    e no comeo (o rosto, a cabea). Dito de outro modo, quantomais

    algum se desloca no sentido rio acima, mais prxima estapessoa

  • 4 0

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    estaria do leste e da passagem para o nvel celeste; e quantomais

    se desloca no sentido rio abaixo, mais prxima estaria do oeste eda

    passagem para o nvel sub-aqutico (e as outras dimensesinvisveis

    situadas abaixo do nvel terrestre). Ao que parece, o incio docaminho

    do Sol (no Cu) pensado tambm como o incio do caminho do rio

    (na terra), assim como o fim do caminho solar celeste coincidecom

    o fim do caminho do rio no nvel terrestre. O rio em questo,claro,

    o Araguaia, o grande rio do territrio Karaj e Java.

    Teramos ento uma associao entre o leste, a nascente do

    rio (sul), o nvel celeste (ou o que est acima) e a cabea/rostode

    um corpo (entre o ibk, o biura e o Biu). No outro extremo,entre

    o oeste, o fim do rio (norte), o nvel sub-aqutico (ou tudo queest

    embaixo) e as pernas/ps de uma pessoa (entre o iraru, o bd

    br e o Berahatxi). De modo que o eixo horizontal sul/norte(que

    coincide com rio acima e rio abaixo no Araguaia) tambmestaria

    aglutinado ao eixo nico que funde leste/oeste eacima/embaixo,

    discutido antes. Toral (1992) j havia sugerido que odeslocamento

    histrico dos Karaj para o sul, rio acima (o que no ocorreucom

    os Java), seria uma continuidade do mesmo impulso doshumanos

    das profundezas que ascenderam ao nvel terrestre, refletindoum

    desejo de alcanar o nvel celeste. Embora sem muitos dosdados

    que so expostos aqui ou sem a compreenso de uma lgicacorporal

    subjacente, em Rodrigues (1993:425-426) havia uma proposio

    preliminar de que haveria uma coincidncia entre leste, sul e aaldeia

    do cu, de um lado, e oeste, norte e o wabd, de outro.

    ilusrio, contudo, pensar que esses extremos opostos do

    grande eixo espacial so pensados como permanentemente

    apartados ou isolados um do outro. Um tema recorrente da

    cosmologia Java, analisado em detalhes anteriormente (idem),

  • 4 1

    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    que tudo que inicia um movimento retorna s origens, de modoque

    caminhar para a frente , a partir de algum ponto, voltar parao

    comeo. Para o ponto de retorno existe o conceito essencialde

    tya, que se refere justamente ao ponto intermedirio (o meioou

    centro) entre as extremidades, a partir do qual tudo que vaicomea

    a voltar. Assim, o meio-dia, chamado de Txuu tya, o centro(do

    caminho) do Sol, o ponto a partir do qual entende-se que oSol,

    em seu percurso celeste, comea a retornar ao ponto final (ooeste),

    que o incio (leste) de sua caminhada pelo nvel sub-aqutico.Do

    mesmo modo, a estao da cheia (beora) considerada o ponto

    tya de um ciclo anual de chuvas, em que o esvaziamentoprogressivo

    do rio concebido como um retorno das guas s cabeceiras (e

    no como seu escoamento em outro rio ou no mar, como parans)38.

    O fim da vida na terra [enterro a oeste e descida do (k)uniao

    wabd situado embaixo] sempre uma volta origem primordial,

    uma descida a um espao situado abaixo do nvel terrestre (deonde

    os humanos mticos ascenderam), mesmo que depois as almas

    tenham destinos diferentes. Em 1997/8, obtive a confirmao da

    informao anterior de que durante o enterro secundrio(titarasa,

    tirar os ossos), aproximadamente um ms depois do primeiro

    enterro, o tempo de durao do luto, o cadver era colocadodentro

    de uma urna funerria (watxiwii) na posio fetal, a cabeaprxima

    das pernas/ps, simbolizando o reencontro do fim com ocomeo39.

    Todo rio, assim como o rota solar, o ciclo de vida, o mundoe

    o corpo humano, possui um ponto intermedirio, chamado berotya,

    centro (tya) do rio (bero), em relao a duas extremidades

    assimtricas. No caso do Rio Araguaia, a Ilha do Bananal

    corresponde ao bero tya. Tanto o comeo como o fim dos rios,ou

    seja, as duas extremidades, so chamados de bero knana

  • 4 2

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    (extremidades do rio, o fim do mundo). A coluna vertebral deuma

    pessoa (tityby) tambm tem um ponto central (tityby tya) eduas

    extremidades, raroko, a extremidade (roko) ligada cabea(ra),

    e rokoti (o cccix), extremidade (roko) ligada s pernas (ti),

    apontando para a idia de que cabea e ps/pernas so igualmente

    pensados como extremidades que se encontram. O que refora a

    proposio de que caminhar do comeo dos rios (associado

    cabea) para o seu fim (associado s pernas) voltar ao incio a

    partir de um ponto intermedirio. A terminologia para o futuro eo

    passado ilumina essa idia, uma vez que o passado e o futuromais

    distantes so referidos pelo mesmo termo40:

    . antes de ontem kanau kanau

    . ontem kanau ou kau

    . hoje wiji

    . amanh rudi

    . depois de amanh kanau ou kau

    . depois de depois de amanh kanau kanau

    Os mitos, chamados de lahi ijyky (histrias das avs) ou

    hkna ijyky (histrias de antigamente) podem ser chamados

    tambm de ihetxiu ijyky, narrativas [ijy(k)y] sobre o queaconteceu

    no tempo antigo, uma vez que hetxi (ndegas ou nus) pode tero

    sentido no s do que est embaixo, mas tambm do que est atrs,

    ou seja, o que aconteceu antes41. Afinal, a cabea o que saina

    frente quando o beb nasce momento crucial para o pensamento

    Java, do qual a sada mtica de baixo para cima um equivalente

    simblico , enquanto as ndegas e as pernas saem depois, atrs.

    De onde viria a associao da cabea, rosto ou boca com o comeo

  • 4 3

    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    ou o primeiro e a frente do corpo; e ps, pernas, ndegas ounus

    com o fim ou ltimo e o que est atrs do corpo.

    A idia de que o fim e o comeo coincidem, entretanto, s

    faz sentido dentro de uma perspectiva relacional: o fim dealgo

    sempre o comeo do outro, e esse fim pode ser simbolicamente

    equivalente a um comeo, inclusive terminologicamentefalando,

    porque o olhar nativo no se dirige a quem est de um lado ou

    outro, mas ao que est entre ambos, ou seja, a relaoconstituda.

    O foco de interesse no nos opostos isolados (acima/leste e

    embaixo/oeste), mas na caminhada (do Sol, da gua, das almas)que

    liga os extremos constituindo o meio e transforma-os em uma

    totalidade. Por isso que no nvel terrestre intermedirio,

    espacialmente falando, que se d a ligao/mediao entre os dois

    mundos.

    Por ora basta deixar claro que tanto cada um dos nveis

    cosmolgicos como Butu Hawa (o mundo) so pensados como

    corpos, o que evidenciado mais explicitamente, nos mapas

    respectivos, pelos ps de cada um e pela estrada do Sol,cujas

    entradas e sadas remetem claramente a bocas e nus; e tambm

    pelo fato que a parte terrestre de cada um dos nveiscosmolgicos

    (suu) era uma pessoa/corpo antigamente. O fato do comeo dorio

    (leste, nvel celeste) ser chamado de o rosto branco dele, e ofim

    do rio (oeste, nvel sub-aqutico) de as razes dele, no deveser

    entendido como mera analogia metafrica, mas em seu sentidoliteral:

    significa que tais extremidades so, de fato, pensadas comosendo

    a cabea (ou rosto) e as pernas/ps (ou coxas e nus) do corpodo

    mundo (o ele a que se referem as expresses). Embora cada

    nvel do mundo seja tido como um corpo em si, por um ngulo, o

  • 4 4

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    conjunto formado pelos trs nveis um corpo maior englobante,

    em que o nvel celeste a cabea, o nvel terrestre mediano omeio

    do corpo csmico a sua barriga interna (wo) e externa (w) , e

    o nvel sub-aqutico a sua parte inferior, ndegas e pernas.

    Certos indcios levam a crer que tudo que entra e sai

    comparado simbolicamente comida que entra no corpo humano,

    atravs da boca, para nutrir e trazer vida, assim como a luz doSol

    e as almas que entram no nvel terrestre. O Sol ou os outrosseres

    que surgem no mundo dos humanos sociais, a leste, trazemconsigo

    a luz solar benfica ou as almas que reencarnam nos vivos. Do

    mesmo modo, a comida que sai do corpo, pelo nus,transformada

    em algo no mais aproveitvel ou mesmo repudiado, na forma de

    fezes, comparada ao Sol que se pe e deixa em seu lugar a

    escurido, ou s pessoas que morrem e deixam os parentessofrendo.

    A estrada por onde o Sol caminha chamada Txuu ryy, em que

    ryy tem tanto o sentido de estrada ou caminho quanto o deboca.

    H duas palavras para boca, ryy e ij. Minha boca pode ser

    wary ou waij, embora esta ltima possa se referir tambm parte

    da boca acima dos lbios, onde nascem os bigodes de um homem.

    Uma anlise das expresses mostra que ryy usada mais nosentido

    da boca por onde entram os alimentos, enquanto ij , em geral,a

    boca por onde eles saem. Em outras palavras, as sadas docorpo,

    tais como o nus ou a extremidade externa do canal uretral ou

    vaginal, por exemplo, tambm so referidas pela palavra ij,assim

    como toda desembocadura de um rio bero ij (a boca do rio),

    ou seja, onde um rio acaba e cai em outro. Ij pode ser porta

    tambm, mas seu sentido est sempre associado s sadas de algo:

    o nus pode ser hetxi ij (a boca das ndegas), a extremidade

    externa do canal uretral, n ij (a boca do pnis), aextremidade

  • 4 5

    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    externa do canal vaginal, tyy ij (a boca da vagina) e a

    extremidade externa do canal auricular, nhti ij (boca do

    ouvido). Enquanto ryy associa-se s entradas, boca que recebe

    o que desejvel, ij associa-se s sadas do que inaproveitvel.

    Mas no deixa de ser revelador que, apesar da assimetria,

    as duas extremidades do canal interno do corpo humano so

    pensadas igualmente como bocas, como se o fim (nus) e ocomeo

    (boca) coincidissem42. O mesmo vale para a entrada e sada do

    caminho do Sol (Txuu rotena e Txuu lna), em sua rotacircular,

    uma vez que o fim sempre ser uma volta ao comeo.interessante

    lembrar que o conceito de volta s origens, ou de que os fins

    coincidem com o comeo, expressa-se atravs de uma imagem

    corporal surpreendente no mito em que Tanxiw conquista as

    pinturas corporais e a escrita: o humano chamado Woros olhao

    prprio nus, onde estariam as pinturas corporais e a escrita,fazendo

    coincidir a face (incio) com o nus (fim)43.

    De um ponto de vista relacional, em que a relao com o

    outro que est no centro da ateno, e no o prprio ponto devista,

    a mesma passagem que serve de sada (nus) do nvel celeste

    serve de entrada (boca) para o sub-aqutico e vice-versa, no

    havendo distino simblica significante entre um e outro. Porisso,

    tanto as entradas como as sadas podem ser bocas (ryy, ij),por

    que o que sai para um ao mesmo tempo o que entra para ooutro,

    assim como a morte de algum o nascimento em outro nvel, o

    oeste de uns o leste de outros, o fim de um rio o comeo de

    outro, a morte da vida dentro do tero o nascimento da vidafora

    do corpo materno, o fim da vida no mundo sub-aqutico o comeo

    da vida terrena. Talvez essa seja a razo da palavra ryyquerer

  • 4 6

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    dizer tanto boca quanto caminho ou estrada, pois a funo

    essencial da boca no apenas receber ou expelir comida, mas

    fazer a ligao entre uma extremidade e outra, do mesmo modo

    que o que interessa no onde o Sol entra ou sai, mas ocaminho

    que ele percorre. Dito de outro modo, o centro no uma ououtra

    polaridade (como para Ptesch, 1993, 2000), mas o caminho que

    liga as duas entre si, o que no significa uma mera passagemde

    uma a outra, como no caso Tupi-Guarani (Viveiros de Castro,1986),

    mas um caminho que se constitui fundindo em si os doisextremos.

    A mesma lgica ocorre em relao palavra raru (raiz),

    cujo sentido pode ser tanto o de fim de algo como o de comeo.Em

    iraru (as razes dele), palavra que designa o sentido rioabaixo

    ou a extremidade final de um rio (a sua boca), raizassocia-se

    a coxas e nus, como j foi dito, com o sentido do que estabaixo

    e no fim. Mas em vrias palavras, raru aparece com o sentidode

    comeo ou origem, enquanto a raiz que se localiza abaixo da

    terra, a origem da planta. Afinal, para os Java, embaixo daterra

    est o fim de todos os caminhos, para onde vo os mortos, maso

    nvel inferior tambm a origem da vida em sociedade, de ondeos

    humanos originais subiram para o nvel terrestre. Assim,warutiraru

    a raiz (raru) da extremidade (ti) da minha coxa (waru), aparte

    do corpo onde a coxa comea, ligada ao quadril; wadbraru

    raiz (raru) da minha mo (wadb), ou seja, o pulso, que o

    comeo da mo; ruburaruna, o comeo (raruna) da morte

    (rubu). Mais significativa ainda a expresso lahi raru,

    literalmente raiz (raru) da face () da av (lahi), em quepode

    ter o sentido geral de corpo, como j mencionei, ou seja, a raizdo

    corpo da av; ou mais simplesmente, a origem das avs, pois

    raru tem sempre o sentido de origem. Essa expresso designa

  • 4 7

    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    o conhecimento que os especialistas (os lahi raru rydu), em

    geral as mulheres mais velhas, tm sobre as origens daspessoas,

    seja em termos de sua ancestralidade, as origens dos vnculosde

    parentesco, ou sobre o comeo dos tempos em geral. Ocorreento

    que iraru (rio abaixo), assim como ij (boca), pode ter tantoo

    sentido de fim do rio (relativo s suas coxas) como o decomeo:

    uma das expresses usadas para o leste, associado ao rioacima,

    Txuu rarusi (as razes do Sol), pois o fim/oeste/abaixo do riono

    nvel terrestre (iraru) pode ser tambm a origem/leste/acimado

    rio no nvel sub-aqutico (rarusi), e vice-versa. Assim comoas

    bocas, as razes podem ser tanto o fim de algo quanto a suaorigem.

    Alguns dados apontam para uma associao respectiva entre

    boca/cabea e nus/pernas com a cor branca (ou luz) e o negro(ou

    a ausncia de luz). Em primeiro lugar, existe o fato bvio de queo

    Sol j estava no Cu (acima) quando Tanxiw o conquistou, em

    oposio escurido do nvel sub-aqutico (abaixo); em segundo, o

    leste, associado cabea, o biura (cu branco); um terceiroindcio

    que quando o Sol est perto de surgir, e a noite comea aclarear

    muito de leve, por volta das 4 horas da madrugada, os Javanomeiam

    esse horrio de bdraras, traduzido antes como o lugar outempo

    est comeando a clarear (Rodrigues,1993:89). Mas a traduo

    literal seria algo como a cabea (ra) vermelha (s) do tempoou

    lugar (bd), o que seria uma aluso, sugiro, cor vermelha do

    cocar (raheto) que o Sol usa na cabea e que clareia aescurido.

    A claridade teria a ver, ento, com a cabea que surge nohorizonte.

    Por outro lado, o horrio equivalente meia-noite chamado de

    ruw tya, o centro ou ncleo na noite, que se ope ao Txuu tya

    (meio-dia). A palavra usada para noite, literalmentefalando,

    significa barriga (w) do nus (ru), ou seja, o meio (abarriga

  • 4 8

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    o meio do corpo) do que est abaixo (o nus), pois ameia-noite,

    para quem est na terra ou no Cu, quando o Sol est no meio

    espacial da caminhada pelo nvel inferior sub-aqutico. Ruwtya

    seria, ento, o centro exato (tya) do meio (w) do Fundo dasguas

    (ru). Assim a escurido mxima tem seu sentido ligado ao nus,ao

    que est embaixo. Quando meio dia no Cu, e o Sol est com oseu

    cocar na cabea, no meio da caminhada celeste (Txuu tya),meia

    noite embaixo (ruw tya), no nvel sub-aqutico (e vice-versa),porque

    o nvel intermedirio impede que a luz celeste ilumine o nvelinferior.

    Aquilo que est abaixo teria menos luz, como o mundo escurodos

    mortos que vivem do wabd, o cemitrio invisvel abaixo daterra.

    Tudo leva a crer que a oposio cabea versus ps/pernas

    tem o mesmo significado, em termos corporais, da oposio bocae

    nus, podendo agreg-las, junto com claridade e escurido, aogrande

    eixo csmico corporal que ope espacial e temporalmente comeo,

    cabea ou boca, comida, luz ou branco, leste, nvel superior (Biu)e

    rio acima, de um lado, a fim, ps/pernas ou nus/ndegas,fezes,

    escurido ou negro, oeste, nveis inferiores (Berahatxi ewabd)

    e rio abaixo, de outro. Ao primeiro grupo juntam-se o estatismo,a

    paz, os parentes, os tios paralelos (referidos pelo termoura,

    branco), os primognitos e os heris transformadores, enquanto

    ao segundo juntam-se as transformaes, os conflitos, os afins,os

    cunhados (referidos pelo termo lyby, negro) e os caulas44.Todos

    manifestaes da grande e essencial oposio: homens e mulheres

    (ou identidade e alteridade), que transportada para asrelaes

    entre os povos que formaram a sociedade e a cultura Java.Desse

    modo, Tlra e seu povo, de um lado, e os Wr, de outro,associam-

    se aos extremos respectivos de masculinidade e feminilidade, oupaz

  • 4 9

    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    e conflito, estatismo e transformao, os Java atuais constituindoo

    produto da relao entre ambos, equivalente ao meiocosmolgico.

    Nesse grande mundo/corpo, em que a estrada do Sol e dos

    habitantes csmicos tambm o canal que liga a boca ao nus

    dentro de cada corpo e do corpo total, existe sempre umponto

    intermedirio entre as oposies mencionadas, que pode ser a

    barriga, o meio dia ou a meia noite, o nvel terrestre ou o meiodo

    rio, todos equivalentes simblicos. Assim como o estmago oponto

    intermedirio do corpo humano em que a comida no mais a

    delcia que entrou pela boca que recebe nem os restosrepugnantes

    que saram pela boca que expele, o meio csmico o nvelterrestre

    o lcus da socialidade, o grande centro estomacal cosmolgico

    que faz a mediao tensa entre um extremo desejado e umrepudiado,

    ambos igualmente anti-sociais. O fim do caminho do Sol (noCu)

    tambm um comeo (no Fundo das guas) porque o caminho do

    nvel celeste s concebido em relao ao caminho do nvel sub-

    aqutico, e vice-versa, assim como o meio-dia celeste s existeem

    relao meia-noite do Fundo das guas. Os fins s coincidem

    com os comeos porque o ponto de vista adotado o da relao

    com o outro, ou seja, nem o eu nem o outro, mas o que est no

    centro, entre45. O meio mediao entre opostos, em outras

    palavras, a prpria relao a relao em si , um terceiro

    produto que liga e contm os dois extremos opostosinternamente,

    mas que ao mesmo tempo no nenhum dos dois. Ao se considerar

    o triadismo como uma forma de dualismo assimtrico,considerando

    o meio como um dos opostos, perde-se da perspectiva justamentea

    relao entre os opostos, a caminhada que liga os extremos e

    possibilita a transformao46.

  • 5 0

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    Concluso

    no centro, no sentido de uma situao espao-temporal

    entre, enquanto mediao, que se exerce a socialidade referida

    pelo conceito de tya, que pode ser interpretado, de modomais

    esttico, como centro, ncleo, meio, ambivalncia ou, de

    modo mais dialtico, como mediao, relao entre opostos,

    paradoxo ou sntese. Os Java so o Povo do Meio justamente

    porque a socialidade no est nem dentro da sociedade,enquanto

    sistema fechado, nem fora, enquanto estrutura que serelaciona

    com a exterioridade, mas entre, contendo em si os opostos.Em

    outras palavras, pretendo preencher o conceito de tya comuma

    significao processual e histrica, em que a estrutura muitomais

    o produto paradoxal de uma mediao contnua entre diferentes

    que se contradizem do que um centro esttico.

    Distancio-me, assim, de uma abordagem estruturalista, como

    a de Ptesch (1993, 2000), para quem o triadismo cosmolgico

    Karaj no visto como um meio que funde opostos uma relao

    criativa , mas como um centro oposto a dois extremos, ouseja,

    uma forma travestida de dualismo, dentro do espritolvi-straussiano

    (1975, 1982). Mesmo que a autora tenha tido a inteno de dotara

    representao Karaj de um dinamismo que estaria ausente,segundo

    os antroplogos estruturalistas, na representao concntrica

    Bororo, dinamismo no o mesmo que histria. O meio a que me

    refiro no um mero centro exteriorizado, ou uma aberturarelativa

    de uma estrutura esttica, mas uma relao histrica econtraditria,

    que pode ser entre homens e mulheres, genros e sogros, ouentre

    os Aruak e os Macro-J, o lcus da socialidade.

  • 5 1

    O POVO DO MEIO: UMA PARADOXAL MISTURA PURA

    Os Java esto no meio porque tambm vem a socialidade

    como estando entre um extremo repudiado (dos corpos abertose

    que sangram, da afinidade, alteridade e transformaes) e um

    desejado (dos corpos fechados, onde no existem outros, afins,a

    mudana e a morte), realizando a mediao social entre estados

    no-sociais e opostos (Rodrigues,1993)47. A ambivalncia Java

    no est fora do ser humano social, mas lhe inerente, como

    mediao entre opostos assimtricos. Assim como a cultura, todo

    ser social uma sntese paradoxal das relaes entre aspolaridades

    feminina e masculina, mudana e estatismo, contendo em si os

    extremos. O estar entre Java no deixar de conter os dois

    extremos, como no caso do vazio ontolgico transitrio dapessoa

    Tupi-Guarani, mas conter em si a relao entre os opostos.Esse

    resultado no , tambm, o mesmo que a pessoa dual Apinay (Da

    Matta,1976) e Krah (Melatti,1976), em que os opostoscoexistem

    mas mantm-se separados, na forma de substncia e nome (ou

    natureza e cultura). A ambivalncia ou o estar entre da pessoae

    da cultura Java, enquanto produto de uma verdadeira relao

    dialtica, estariam mais prximos, ento, do axioma Bororo:

    everything exists by reason of an internal dialectic. In everypossible

    abstract mode, it is itself and its own antithesis(Crocker,1985:134),

    de modo que todo ser humano seria uma sntese vital soul

    (op.cit.:288) dos opostos Bope/substncia e Aroe/nome.

    Tanto a cultura como a pessoa Java so vistas como

    misturas puras, o equivalente do meio cosmolgico: snteses de

    fixao e transformao, identidade e alteridade, masculino e

    feminino, interior e exterior, embora haja sempre uma hierarquiade

    valor da pureza sobre a mistura, de um extremo cosmolgico(rio

    acima) sobre o outro (rio abaixo). Enquanto a pessoa Jconstituda

  • 5 2

    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    de uma identidade contrastiva no jogo especular de relaes de

    oposio, em que se o que o outro no ; e a pessoa Tupi-Guarani

    dissolve a prpria noo de identidade, sendo apenas quando se

    torna o outro; talvez pudesse ser dito que a pessoaJava/Karaj,

    uma variao Bororo, no se espelha simplesmente no outro nemse

    torna o outro ao longo do tempo, mas o contm dentro de siprpria

    desde sempre, paradoxalmente.

    Notas

    1Mestre em Antropologia pela Universidade de Braslia. DoutorandaemAntropologia pela Universidade de Chicago (EUA).

    2O presente artigo uma verso resumida de parte de um captulo deminha tesede Doutorado, em preparao. Realizei seis meses depesquisa de campo entreos Java em 1990, para o Mestrado, e maisdoze meses de pesquisa em 1997/1998, para o Doutorado. Tanto noMestrado quanto no Doutorado contei como apoio financeiro einstitucional do CNPq, de quem recebi bolsas deestudointegrais.

    3Ver Da Matta (1976, 1979), Melatti (1976, 1979), Maybury-Lewis(1979,1984) e Crocker (1979, 1985), por exemplo.

    4Para quem as sociedades amaznicas, com seu amorfismo interno,negariam aafinidade ou alteridade internamente, no plano das relaessociolgicas com osafins reais, projetando-as para o exterior (osafins potenciais no reais), ouseja, a aliana seria feita num planosimblico, com os outros externos (mortos,estrangeiros, inimigosetc). O que seria diferente dos sistemas dos centro-brasileirosconservadores, com um centro interno em que os outros ou osbrancosesto excludos e as diferenas do exterior so incorporadas emarcadasinternamente. Haveria ento uma oposio entre sociedadesabertas, sem interior,amorfas ou minimalistas, que projetam asdiferenas e o seu centro para fora (osTupi-Guarani e amaznicos); esociedades fechadas e sem exterior, queincorporam e marcaminternamente a diferena (os J-Bororo).

    5Ver Ptesch (2000) sobre a terminologia Karaj e Souza (1995)sobre o paradoxoiroqus-havaiano dos grupos alto-xinguanos.

    6Ver os Comaroff (1992), para quem toda cultura intrinsecamentedualista eaberta s influncias externas, de modo que ordem edesordem, sistematizao e

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    imprevisibilidade, estatismo e mudana convivem de forma fluida eambgua. Osmesmos autores, assim como Cohn (1994), Sahlins (1996) eTurner (1988),entre outros, defendem a idia geral de que em todacultura, mesmo antes docolonialismo ou da penetrao capitalista,existiu e existe em articulao com oambiente social ao redor, sejamas outras comunidades locais, as economiasregionais ou as forasglobais. Deste modo, no se pode falar em limites fixosoupr-ordenados entre o que interno e o que externo a cada sociedadeou cultura.

    7 Na tese em preparao h uma discusso mais aprofundada sobre omito enquantoum modo de conscincia histrico (ver a coletnea deHill, 1988, sobre o assuntoe, em especial, os artigos deTurner).

    8Parte da discusso apresentada aqui origina-se da anlise dosmitos coletadosentre os Java. Na tese em preparao, mostro como osepisdios mticos so,apesar da aparncia fragmentada, uma nica e longahistria sobre os tempos dacriao, cujo eixo central apresentado logono incio do trabalho citado.

    9A letra K entre parnteses indica a verso feminina da palavra,aqui e em outroscasos. A verso masculina seria Kuriawau.

    10Tlra apresentado como o primeiro il, cargo de chefiatradicional transmitidoatravs de geraes, associado principalmentetarefa de resoluo dos conflitosinternos. Existem outros tipos dechefia (poltica e ritual), mas nada que secompare, em termos deprestgio, s funes exercidas antigamente pelos il.

    11Ver Turner (1992) e Lea (1993).

    12Ver Ireland (2001) sobre o pacifismo Waura (um dos gruposAruak xinguanos)para quem o auto-controle e a paz so valoressupremos, em oposio aodescontrole dos guerreiros, tema centralJava. O que diferente do ethospredatrio de que fala Viveiros deCastro (1993, 2002) para os amerndios; edo comportamento belicistaJ, exemplificado pelos Kayap e Xavante, cujareferncia encontrada naliteratura histrica, como em Chaim (1974); ouantropolgica, como emTurner (1992) e Bamberger (1979) sobre os Kayap, eMaybury-Lewis(1984) e Lopes da Silva (1992) sobre os Xavante, que falam deumethos guerreiro desses grupos.

    13Famlias Java costumavam mudar-se no vero (seca) paratemporadas depesca nos lagos e rios da Ilha do Bananal e arredores,acampando nas praias quesurgem com a seca, o que diminuiu bastanteaps o contato. Nas ltimas dcadas,as pescarias de vero tm sidofeitas principalmente por grupos de homens como objetivo de venderseu produto a compradores externos. Embora houvesse umpadro dealternncia entre aldeias fixas e acampamentos de vero,relativamenteparecido com o padro Kayap, as aldeias fixas no eramabandonadas, o que muito diferente do semi-nomadismo dos Kayap, queabandonavam suasaldeias a cada 2 ou 5 anos (Turner, 1992), ou dosXavante (Maybury-Lewis,1984).

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    PATRCIA DE MENDONA RODRIGUES

    14Ver Da Matta (1979) e Melatti (1979), por exemplo, sobre osApinay e Krah,embora haja terminologias J de troca simtrica, comoos Xavante (Maybury-Lewis, 1984) e Bororo (Crocker, 1985,1979).

    15Ver Viveiros de Castro (1987) sobre a recluso Iawalapti, porexemplo.

    16Em 1990, havia uma adolescente reclusa por um temporelativamente longo emCanoan. Os Java dizem que a recluso femininaps-menstruao poderiadurar at 6 meses antigamente, no passando dealguns dias atualmente (verRodrigues, 1993). Os il eram criadosreclusos, antes do casamento, a maiorparte do tempo.

    17Dos Wou (Tapirap), representantes de uma influncia Tupi, osJava dizem terherdado um tipo de milho, o uso do algodo, do urucume do jenipapo (aspinturas corporais), o estojo peniano, a tanga deentrecasca e palavras como omai (milho). No h referncia a umentrelaamento cultural maior com osTapirap, da famlia Tupi-Guarani,com quem teria havido alguns casamentosno passado, embora sejamconsiderados um povo superior entre os outrospovos estrangeiros. Notrabalho em preparao, h uma argumentao maiorsobre a influncia Tupi,a qual, creio, no tem o mesmo peso das influncias J-Bororo e Aruak.A terminologia de parentesco Karaj uma variao daquelaque se usa noalto-Xingu (ver Souza, 1995). O xamanismo Karaj, por sua vez,quetambm atribudo por Ptesch aos Tupi, atravs dos vizinhosTapirap,baseia-se na ambigidade do xam, ao mesmo tempo curador emortal, life-givere life-taker. Como mostra Viveiros de Castro(1986), essa uma caractersticaexclusiva dos Tapirap, no podendo sergeneralizada aos Tupi em geral. O quenos leva a questionar se noseriam os Tapirap que teriam sofrido influnciasdos Karaj, e no ocontrrio. Por fim, no que se refere ao triadismo cosmolgico(ummeio, o nvel terrestre, entre duas extremidades, Fundo das guas e oCu),que para Ptesch seria uma verticalizao de influncia Tupi,argumento notrabalho em andamento que h similaridades comcosmologias Aruak, por umlado. Por outro,ele estaria muito maisprximo do paradoxo Bororo, em que apessoa uma sntese instvel deprincpios antagnicos (Crocker, 1985), omesmo valendo para a pessoae a cultura Java, ambas pensadas como essemeio que contm ou faz amediao entre duas extremidades opostas.

    18Deslocamentos espaciais so associados a transformaes sociais,assuntoaprofundado na tese em andamento. Os homens so associadospermannciae as mulheres s transformaes, o mesmo contedo simblico dopar Aroe/Bope Bororo (Crocker, 1985). As mulheres so tambm tidascomo a causa dosconflitos nesse mundo social.

    19Ver o trabalho de Schiel (2002) sobre o desprestgio dacategoria mestioentre os Karaj da cidade de Aruan.

    20Atitude que tem seu paralelo no ato de criar nomes/Aroe Bororo(Crocker,1985),atravs do qual se pretende dar forma ou fixar o caosinominado.

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    21Alguns dos dados a seguir j haviam sido apresentados em minhadissertao deMestrado, pela Universidade de Braslia (Rodrigues,1993), sendo aqui inseridosem uma caracterizao mais completa e emalguns pontos revisada docosmos Java.

    22Ver Rodrigues (1993) sobre o cosmo Java e Donahue (1982),Toral (1992),Lima Filho (1994) e Ptesch (2000) sobre o cosmosKaraj, estruturalmentesemelhante.

    23Ra (cabea) tem aqui o sentido geral de corpo tambm. Em outrasexpresses,so as palavra (rosto/face) ou tyky (pele) que tomam olugar do corpo inteiro.

    24Ver Toral (1992:152) para a informao de que o Berahatxi, entreos Karaj,encontra-se abaixo dos leitos dos rios ou lagoas, o quefoi confirmado pelosJava.

    25Wtyky, invlucro, pele ou corpo (tyky) da barriga (w) tambm temo sentidogeral de corpo, assim como wratyky, invlucro, pele oucorpo (tyky) dacabea (ra) da barriga (w).

    26Hawa um territrio definido ao redor de uma aldeia e butu tudo,otodo.

    27A numerao em questo no se refere ordem dos mapas/desenhosnestetrabalho, mas numerao anterior dos trabalhos.

    28Txuu rotena, o lugar onde entra (rotena) o sol (txuu); txuulna, o lugaronde sai (lna) o sol (txuu). Ver Toral (1992) paradefinio semelhante dasmesmas expresses entre os Karaj.

    29Expresso cujo sentido local de sada dos humanos.

    30Os aruans so os humanos mgicos que vivem no Fundo das guas,mascarados,e que so trazidos pelos xams para participar dos rituaisterrestres, quando soincorporados pelos homens.

    31 Ver os mesmos conceitos espaciais Karaj e sua significaosimblica emDonahue (1982), Toral (1992), Lima Filho (1994), Ptesch(2000).

    32Lima Filho (1994) fala da mesma inverso entre dia e noite paraos Karaj.

    33Ver as etnografias de Donahue (1982), Toral (1992), Lima Filho(1994) e Ptesch(2000).

    34Aqueles que morrem tambm encontram a escurido, em um primeiromomento.O mundo dos woros e dos (k)uni mais escuro (ver LimaFilho,1994 eRodrigues,1993) e os (k)uni s andam pelas aldeiasperseguindo os parentes noite.

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    35Carneiro da Cunha diz que os Krah costumam localizar a nicaaldeia dosmekar (princpio pessoal de algum aps a morte) nokhoikwa-yiht,literalmente o fim do cu, isto , o ocidente, onde oSol se pe (1987:74). Anica aldeia dos mortos Krah, em sua oposioaos vivos, parece concentrar aspolaridades que os Java localizam emdois extremos opostos: ao mesmotempo o estar entre si desejvel e ainvoluo indesejvel.

    36Esta uma importante diferenciao, com base etnogrfica, domodelo propostopor Ptesch (1993, 2000), baseado na suposta distinoKaraj entre um eixovertical (nvel aqutico, terrestre e celeste),que no passaria de uma oposioassimtrica entre os nveis aqutico eceleste (igualmente fechados, estticos eonde as pessoas soimortais) ao nvel terrestre (aberto e mortal); e umhorizontal(leste/oeste, espao masculino/espao feminino), o queseria uma oposiodiametral. Para a autora, a verticalidade tridica(dualismo assimtrico)representaria uma abertura da estruturadiametral horizontal fechada.

    37 Ptesch (2000) mostra como o hitxe(k), um artefato de madeiratrabalhadoartisticamente, colocado nas extremidades do tmulo domorto Karaj (um nacabea e outro nos ps), pensado como umarepresentao do corpo humanotripartido (cabea, meio e pernas). Toral(1992) sugere que o hitx(k) Karaj uma representao do morto.

    38Embora no tenha obtido essa informao, imagino que o fim darota de um rioterrestre o incio, em sentido oposto, do rio ou riosque correm no Fundo dasguas, assim como o fim do caminho solar aqui(o nosso oeste) o incio docaminho do Sol embaixo, o lestesub-aqutico. Tal hiptese auxiliada pelarepresentao visual do ciclodas guas, feita por um Java em forma de crculo,ou seja, igual rotado Sol; o auge ou meio da enchente beora tya (equivalenteao meiodia solar, Txuu tya); e o auge da seca, wyra tya (equivalentemeia-noite,ruw tya). Em Lima Filho, (1991:56), o auge da secawyrawtya, o meio (tya)da barriga (w) da seca (wyra). Entre o augeda enchente e o auge da seca existeo bhetxi (ndegas da gua),passagens entre as duas estaes em que as guasesto estagnadas,equivalentes s passagens do Sol (Txuu lna e Txuu rotena).

    39O corpo humano concebido como o produto de um acmulo gradualde energiavital, desde a infncia at o incio da vida adulta, o pontotya (meio) do cicloenergtico humano. Quando homem e mulher tm oprimeiro filho, acredita-seque eles comeam a retornar ao incio,perdendo energia vital. O incio e o fim davida, do ponto de vistaenergtico, so concebidos como simbolicamente similares,o querepresentado nas pinturas corporais associadas a cada classe deidade(Rodrigues, 1993).

    40De modo que caminhar para a frente/futuro seria equivalente aretornar paratrs/passado. Toral (1992), em sua sugesto de que odeslocamento histricodos Karaj rio acima/sul seria uma continuao daascenso mtica, sugere que irpara o alto/frente seria futuro e irpara baixo/trs seria passado. O que eu

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    proponho, j formulado antes (Rodrigues,1993:426), que ir para oalto/frente/futuro em algum momento torna-se ir parabaixo/atrs/passado. Ptesch(1987:79) j havia sugerido que,cosmologica e ontologicamente falando, asubida quase equivaledescida, a posterioridade ancestralidade, o futuroao passado.

    41Toral (1992:147) fala que o nvel sub-aqutico chamado pelosKaraj deberahatxiwebro, por trs das profundezas das guas, de modoque abaixoequivaleria a atrs. Como bro (br entre os Java) so ascostas de umapessoa, o sentido literal dessa expresso, traduzidapor mim, seria as costasda barriga das ndegas do rio, ou seja, oque est atrs e abaixo do rio.

    42Significativamente, a palavra waijn, minhas fezes, pode serutilizada, emtom jocoso, no sentido de minha comida (warsna).

    43Na ponta sul da Ilha do Bananal est o bero ij ib(k), a boca dorio acima,e na ponta norte o bero ij iraru, a boca do rio abaixo.Apesar do RioAraguaia correr no sentido sul/norte, as duasextremidades so bocas do rio.

    44Ver Ptesch (2000) para o contraste entre ura e lyby naterminologia deparentesco e afinidade Karaj.

    45O que no seria o mesmo que o ponto de vista do inimigo, ooutro, adotadopelos Arawet, por exemplo (Viveiros de Castro, 1986,2002).

    46 Refiro-me ao modelo Karaj de Ptesch (1987, 1993, 2000), paraquem ocentro uma das polaridades do dualismo que se disfara detriadismo no eixovertical: de um lado estaria o centro (nvelterrestre, aberto, de grande mobilidadee mortal), e de outro osoutros nveis anlogos (celeste e sub-aqutico, ambosfechados,estticos, de movimento restrito e imortais), o que resultarianaoposio assimtrica a que a autora se refere. A autora consideroucomo maissemelhantes entre si do que diferentes os extremossub-aqutico e celeste,porque no obteve dados, entre os Karaj, sobreo extremo dos ensangentados,tambm situado no nvel sub-aqutico, masradicalmente oposto ao extremodos habitantes celestes. Enquanto noCu os humanos tm os corpos fechadose purificados, sem exteriorizarsubstncias, os habi

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Author: Jonah Leffler

Last Updated: 04/11/2023

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